A REFORMA ‘EUCARÍSTICA’ DO CONCÍLIO VATICANO II
VISTA DENTRO DO CONTEXTO HISTÓRICO GERAL
DA LITURGIA
Frei José Ariovaldo da
Silva, OFM*
Já celebramos os 40 anos da Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia (SC), do Concílio Vaticano II, publicada no dia 03.12.1963. Por ocasião do 40o aniversário deste importante documento conciliar, a Dimensão Litúrgica da CNBB promoveu inúmeros encontros de estudos pelo Brasil afora em torno da Liturgia renovada pelo concílio. O mais importante deles foi o Seminário Nacional sobre a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, acontecido nos dias 10 a 13 de março de 2003, em São Paulo. Tais encontros ajudaram muita gente a tomar consciência sobre o sentido e a importância da reforma litúrgica do Vaticano II. E também ajudaram muita gente a se aprofundar ainda mais sobre o alcance teológico-pastoral da reforma, bem como serviram de incentivo para levar adiante o sonho litúrgico concílio...
Estamos diante de uma Constituição
sobre a Liturgia. Todos sabem o que significa isso: uma Constituição! Temos a
nossa Constituição Federal, isto é, a Carta Magna que espelha o rosto da Nação
e rege a vida em comum do povo brasileiro. As Ordens e Congregações Religiosas
têm suas Constituições Gerais, isto é, a Carga Magna que espelha o carisma
próprio de cada uma e rege a vida em comum de seus membros. E a Constituição
sobre a Liturgia? É a Carta Magna que, com seus princípios teológicos e
pastorais, espelha, ilumina e orienta a vida litúrgica da Igreja que, em
milhares de comunidades pelo mundo afora, se reúne para celebrar e viver a
Páscoa de Cristo e, em Cristo, a nossa páscoa.
O segundo capítulo da “Sacrosanctum
Concilium” trata especificamente da Eucaristia (cf. SC 47-58), sobre a qual
estamos estudando. Mas atenção: não podemos abordar a Eucaristia apenas se
atendo a este capítulo! Pois o primeiro capítulo (que apresenta os princípios
gerais: Natureza e importância da liturgia na vida da Igreja, formação e
participação litúrgicas, a reforma litúrgica, a vida litúrgica nas dioceses e
paróquias, a pastoral litúrgica), no fundo também fala dela enquanto celebração
pascal. Este primeiro capítulo é fundamental para uma correta compreensão da
Eucaristia renovada pelo Vaticano II.
Mas antes, há que se tratar da
reforma ‘eucarística’ do Concílio Vaticano II vista dentro do contexto
histórico geral da Liturgia. E é o que vamos fazer aqui. Trata-se de uma
primeira abordagem, a meu ver, de suma importância, pois nos possibilita intuir
e perceber com maior nitidez três coisas. Primeiro: O por quê da reforma do
Vaticano II. Segundo: O por quê das dificuldades na implantação da reforma em
nosso meio, não obstante os 40 anos já passados. Terceiro: Motiva-nos a levar
mais a sério a orientação teológico-pastoral do concílio no que diz respeito,
no nosso caso, à reforma ‘eucarística’.
Para tanto, veremos primeiro,
sinteticamente, algumas características da eucaristia (sua celebração e
compreensão) no primeiro milênio da era cristã. Em seguida, em paralelo a
estas, destacaremos as “mudanças” acontecidas no segundo milênio, o que vai
naturalmente nos acordar para o alcance teológico-pastoral da reforma
‘eucarística’ do Vaticano II[1].
algumas
características
1.1. Como primeira característica destacamos a centralidade do mistério pascal. A saber, a eucaristia era entendida como celebração do mistério pascal, memorial da morte e ressurreição do Senhor Jesus. Assim, o altar era o ponto central, a referência de toda a celebração. Tanto que, para realçar a sua centralidade, em muitas igrejas se colocava sobre ele até mesmo uma espécie de cobertura, uma cúpula (sustentada por quatro colunas), chamada de baldaquino.
1.2. A
presença real de Cristo era vivenciada (sentida) na globalidade da celebração
(na assembléia reunida, na Palavra proclamada, na presidência da celebração e,
sobretudo, nas espécies de pão e vinho).
1.3. A
Eucaristia como celebração memorial da Páscoa é que constituía a principal
fonte de espiritualidade cristã. O “lugar” onde os cristãos encontravam força
para levar adiante a missão de Jesus era precisamente a celebração da
Eucaristia como memorial pascal.
1.4. Outra
característica: a centralidade da Palavra proclamada. Esta, como presença viva
do Senhor falando para o seu povo, era levada a sério, com leitores
qualificados, ambão, lecionário, homilia.
1.5. Prevalecia
a consciência de que a Liturgia da Palavra (como momento do diálogo da Aliança)
e a Liturgia eucarística (como momento do selo da Aliança) constituíam um só
ato de culto
1.6. O
mistério pascal celebrado é que constituída a principal fonte de inspiração
teológica. A saber, a teologia eucarística era então elaborada principalmente a
partir da experiência do mistério de Deus na divina Liturgia (escuta da Palavra
e participação no Sacramento). Estudava-se a Eucaristia no culto e a partir do
culto. Como ensinava Santo Ambrósio: “Vocês querem conhecer a Eucaristia? Vejam
o que dizem as orações eucarísticas da tradição das igrejas”[2].
1.7. A
própria iniciação à vida eucarística obedecia uma metodologia própria: a
mistagogia. A pessoa era iniciada à compreensão e celebração eucarística a
partir do rito, isto é, a partir da ação eucarística. O mistagogo ensinava a
Eucaristia com um olhar nos seus ouvintes e o outro olhar no altar.
1.8. Característico
também do primeiro milênio é o caráter comunitário e ministerial da celebração
eucarística. A saber, o sujeito da ação eucarística era entendido como sendo a
comunidade eclesial reunida em assembléia, povo sacerdotal, corpo de Cristo. E
isto significa que a celebração era participada por todos, havendo nela
inclusive uma variedade de ministérios litúrgicos.
1.9. E
mais, por ser a celebração eucarística uma ação comunitária e ministerial, ela
era entendida precisamente como um “comer e beber juntos em ação de graças”,
obedecendo ao mandato de Cristo: “Tomai e comei... tomai e bebei”.
1.10.
Outra característica: a celebração do mistério
pascal acontecia de forma adaptada às diferentes culturas com sua linguagem
verbal e gestual própria, surgindo daí toda uma rica diversidade de famílias
litúrgicas tanto no oriente como no ocidente. Dentre os mais diferentes ritos
elaborados, destaca-se do rito romano, próprio da diocese de Roma, ao qual nós
pertencemos e com o qual nós celebramos a Eucaristia.
1.11.
A liturgia eucarística romana, no primeiro
milênio, tinha a característica de ser simples, prática, literariamente
elegante, com as orações dirigidas geralmente ao Pai (por Cristo, no Espírito
Santo). E não havia manifestações de
adoração do Santíssimo na missa. Na verdade, o que se buscava era garantir o
essencial, a saber, a Páscoa. Tratava-se de celebrar o mistério pascal, e
evitava-se tudo o que pudesse distrair ou “roubar a cena” deste centro absoluto
de nossa fé. Nada de muitas palavras nem muitos enfeites para não distrair a
assembléia do mistério que se celebra.
1.12.
Enfim, havia uma preocupação com a qualidade
(teológica, ritual, espiritual: pascal) da celebração eucarística, procurando
fazer ao mesmo tempo a ligação liturgia e vida.
2.
A
eucaristia, sua celebração e compreensão no segundo milênio: Deslocamentos de
eixo
Como o
título já sugere, no segundo milênio constatamos uma série de deslocamentos de
eixo na celebração e compreensão da Eucaristia. Vejamos:
2.1. Da
centralidade do mistério pascal, do primeiro milênio, passou-se no segundo
milênio para a centralidade do Santíssimo Sacramento (como “presença real”) e
dos Santos. Mais importante que a eucaristia como celebração memorial da morte
e ressurreição do Senhor Jesus, é então a hóstia consagrada e os Santos. Centro
não é mais a mesa do Senhor em torno da qual a assembléia se reúne para a
celebração pascal, mas o sacrário (por isso, é ele que agora, em muitas
igrejas, vem coberto com um baldaquino!) e a imagem do(a) padroeiro(a) no topo
do altar-mor. A festa mais importante e imponente do ano não é mais a Páscoa,
mas Corpus Christi e a festa do(a) padroeiro(a).
2.2.
Vimos que no primeiro milênio a presença real de Cristo era vivenciada
(sentida) na globalidade da celebração (na assembléia, na Palavra, na
presidência, nas espécies de pão e vinho). No segundo milênio esta presença é
vista quase que exclusivamente no pão e no vinho consagrados, mas sobretudo na
hóstia consagrada. Esquecem-se as outras presenças!
2.3. Se
no primeiro milênio a Eucaristia como celebração memorial da Páscoa é que
constituía a principal fonte de espiritualidade cristã, agora (no segundo
milênio) a fonte de espiritualidade é a devoção ao Santíssimo Sacramento e aos
Santos.
2.4. Se
no primeiro milênio a Palavra era levada a sério, no segundo milênio o povo
praticamente perdeu o contato com a Palavra. Pois o padre lia as leituras em
voz baixa, só para ele, de costas, em latim, lá no altar distante colado à
parede. Desaparece a prática de leitores proclamando a Palavra. O lecionário é
engolido pelo missal. A homilia (explicação da Palavra ouvida) virou sermão
(discurso sobre um tema que pode não ter nada a ver com a Palavra ouvida). O
ambão virou púlpito de oratória sacra. E o povo substitui a Palavra pela
leitura da vida (muitas vezes lendária) dos Santos.
2.5. Se
no primeiro milênio prevalecia a consciência de que a Liturgia da Palavra e a
Liturgia eucarística constituíam um só ato de culto, no segundo milênio
acontece uma separação entre estes dois momentos celebrativos da mesma Páscoa.
Tanto é que o primeiro momento era chamado de “Ante-missa”. Importante era
estar presente na hora da Liturgia eucarística. E se cria que bastava fiel
chegar na hora do ofertório (como diziam) para dar pleno cumprimento ao
preceito dominical.
2.6. Se
no primeiro milênio o mistério celebrado é que constituía a principal fonte de
inspiração teológica e a teologia eucarística era elaborada principalmente a
partir da experiência do mistério de Deus na divina Liturgia, no segundo
milênio a teologia eucarística vira especulação racional (por influência da
Escolástica) sobre a Eucaristia (existência, essência, efeitos, ministro,
sujeito da Eucaristia). Tem-se uma visão por demais “material” da Eucaristia.
Esta vira um objeto de estudo, como se fosse uma “coisa” a ser pesquisada, pois
se perde sua dimensão celebrativa pascal como fonte de compreensão[3].
2.7. A
própria metodologia de iniciação à vida eucarística e ao conhecimento da
Eucaristia mudou. Se antes se aprendia o que é Eucaristia “na igreja” (isto é,
a partir do rito, a partir da ação eucarística), agora, no segundo milênio,
ensina-se Eucaristia na escola, em salas de aula, a partir de conceitos
elaborados pela teologia escolástica. Catequese eucarística virou “decoreba” de
conceitos sobre Eucaristia, com tendência a moralismos...
2.8.
Lembrávamos também o caráter comunitário e ministerial da celebração
eucarística no primeiro milênio. Agora, no segundo milênio, o que predomina é o
individualismo religioso. Enquanto o padre faz a “sua” reza lá no altar, o povo
(do lado de cá) se entretém com suas devoções (terço, novenas etc.).
Multiplicam-se as missas votivas (como cumprimento de promessa). Multiplicam-se
as missas privadas (o padre rezando sozinho a missa), pois aumenta
consideravelmente a demanda por missas pelos defuntos. E para poder atender à
imensa demanda por missas votivas e pelos defuntos, multiplicam-se os padres
“altaristas” (ordenados só para rezar missa!), bem como os altares laterais nas
igrejas. Hoje, como se vê pelo noticiário da nossa imprensa, missa também é
entendida como uma “cerimônia” que se “encomenda”, ou se “promove”, para
“homenagear” alguém (vivo ou falecido), ou para celebrar a “memória” de alguma
pessoa ou evento importante e, inclusive, para “festejar” e “comemorar” algum
aniversário significativo ou abrilhantar algum acontecimento social; uma
cerimônia feita por um profissional religioso contratado (bispo ou padre), à
qual a gente “assiste”...[4].
2.9. Se
no primeiro milênio a ação eucarística era entendida como um “comer e beber
juntos em ação de graças”, agora, no segundo milênio, predomina a prática de
cada um fazer a “sua” comunhão devocional, de vez em quando. A comunhão deixa
de ser entendida pelo povo como parte integrante de sua participação na ação
memorial da Páscoa, para ser entendida mais como devoção pessoal (feita
inclusive fora da missa). Aliás, comungar normalmente na missa chegou a ser
mesmo coisa muito rara. E daí, que se fez? Substitui-se a comunhão pela
adoração da hóstia. Ver e adorar a hóstia na hora da consagração passou a ser para
o povo o ponto alto da missa. Por isso (já que o padre celebra de costas), os
padres introduzem (na hora da consagração) o gesto de levantar bem alto a
hóstia, acima de sua cabeça, para o povo poder vê-la e adorá-la. No primeiro
milênio não existia nada disso!... Posteriormente, fazem o mesmo também com o
cálice. E mais, adotam o costume de tocar campainhas naquela hora, exatamente para motivar e incentivar a
adoração[5].
2.10. Vimos que no primeiro milênio
a celebração eucarística acontecia de forma adaptada às várias culturas com sua
linguagem verbal e gestual. Agora, no segundo milênio, impõe-se no ocidente o
centralismo romano, a uniformidade romana. Implanta-se uma linguagem verbal (o
latim) e gestual rigidamente igual para todas as igrejas do ocidente (com
exceção da arquidiocese de Milão), para celebrar a Eucaristia. Por exemplo,
nossos índios e negros no Brasil tiveram que “aprender” a assistir a missa
rezada em latim! Celebrar a eucaristia (mistério pascal) na língua deles (tupi,
guarani, africana etc.), nem pensar! Era a mentalidade da época!...
2.11. Vimos que a liturgia
eucarística romana, no primeiro milênio, tinha a característica de ser simples,
prática, literariamente elegante, com as orações dirigidas geralmente ao Pai
(por Cristo, no Espírito Santo). E não
havia manifestações de adoração ao Santíssimo na missa. Na verdade, o que se
buscava era garantir o essencial, a saber, a Páscoa. No segundo milênio nós
vemos celebração eucarística transformada num cerimonial complicadíssimo, com
inúmeros gestos e movimentações dos ministros de um lado para outro, com
inúmeras orações em latim ditas em voz baixa. A complicação atinge seu auge com
a pompa barroca. A missa solene se transforma num espetáculo para a visão, com
aquele imenso retábulo cheio de flores, castiçais, luzes, imagens de anjos e
santos, que se levanta sobre a mesa do altar, e com a imagem do(a) padroeiro(a)
lá em cima no topo. Sem falar do monumental e luxuoso sacrário em destaque no
centro do retábulo, sobre o altar, bem como dos suntuosos paramentos bordados
em ouro adornando os ministros sagrados envoltos em nuvens de fumaça de
incenso. Os sinos tocam na hora da consagração, chamando todos à adoração da
hóstia que se levanta solene. Terminada a consagração, toca também a banda de
música, inclusive o hino nacional. Numa palavra, a missa se transforma num
espetáculo para a visão. Enquanto isso (enquanto se assiste ao show), o
povo também se entretém ouvindo os grandes concertos musicais do coral cantando
as célebres “Missas” com acompanhamento de órgão e orquestra. Portanto, a missa
vira um espetáculo para os olhos e para os ouvidos,
em que os elementos exteriores do culto acabaram por “roubar a cena” (quase que
por completo) daquilo que é o cerne da celebração eucarística, a saber, a
Páscoa (paixão, morte e ressurreição do Senhor). E as missas não solenes
continuam sendo encaradas como uma “reza” do padre que a gente encomenda....
2.12.
Enfim, chamávamos a atenção para a preocupação pela qualidade da celebração
eucarística no primeiro milênio (qualidade teológica, ritual, espiritual,
pascal), procurando fazer ao mesmo tempo a ligação liturgia e vida. No segundo
milênio, preocupa-se mais com um discurso teológico intelectual racional do que
com uma teologia e espiritualidade pascais que brotam da própria experiência
celebrativa. Sem falar na preocupação por demais centrada no aparato externo e
rubrical das cerimônias a serem executadas pelos padres. Como vemos no missal de Pio V (1570): Tanto
na sua Introdução como nas suas rubricas internas, toda a orientação gira em
torno do que o padre rigorosamente deve fazer e como deve executar. Esquece-se,
portanto, que existe um povo!... Na há uma preocupação com a participação deste
povo na ação memorial pascal. A qualidade teológica e comunitária cede lugar
para um exagerado legalismo e rubricismo litúrgicos.
2.13.
Dá a impressão que o segundo milênio, do ponto de vista da compreensão e
celebração da Eucaristia, foi totalmente negativo. Foi e não foi! Foi, porque a
liturgia eucarística como celebração pascal, uma vez colocada longe do alcance
do povo, foi parar em segundo plano, fora de eixo. Uma enorme perda! E não foi
negativo, porque o povo, longe da liturgia, soube sabiamente criar uma enorme
força alternativa de resistência frente às intempéries da vida. Como?
Apoiando-se nas práticas devocionais ao Santíssimo Sacramento e aos Santos. Se
tivesse sido diferente, como foi no primeiro milênio, com certeza teria sido
bem melhor, é claro!...
3.
Vaticano
II: resgate do essencial “perdido”
E, então, que faz o Concílio? Com a Constituição sobre a
Sagrada Liturgia, ele resgata uma série de elementos “eucarísticos” essenciais
que praticamente havíamos perdido de vista em todo o segundo milênio. E aí que
está o imenso e inquestionável valor do Concílio!
3.1. Resgata-se a centralidade do mistério pascal: A
eucaristia é celebração do mistério pascal, memorial da morte e ressurreição do
Senhor Jesus. Resgata-se o verdadeiro sentido pascal do “mistério da fé”:
“Anunciamos, Senhor a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição...”.
Resgata-se a centralidade do altar da celebração no espaço da celebração.
3.3. Resgata-se a principal fonte de espiritualidade cristã, a saber, a Eucaristia como celebração memorial da Páscoa (cf. SC 14).
3.4. Resgata-se a centralidade da Palavra, provocando-nos assim a levá-la a sério, com leitores qualificados, ambão em destaque, uso do lecionário e/ou evangeliário, prática obrigatória da homilia nos domingos e dias de festa (cf. SC 24-25).
3.5.
Resgata-se a consciência da Liturgia da Palavra e da Liturgia eucarística como
um só ato de culto, como dois momentos de vivência da mesma Aliança.
3.6.
Resgata-se o mistério celebrado como principal fonte de inspiração teológica.
Uma teologia eucarística terá que ser elaborada sobretudo a partir da
experiência de Deus na divina Liturgia (escuta da Palavra e participação no
Sacramento).
3.7.
Resgata-se a mistagogia como metodologia mais apropriada na iniciação à vida
eucarística. Iniciar à vida eucarística a partir do rito, da ação eucarística.
Um grande desafio que ainda temos pela frente, na catequese!
3.8.
Resgata-se o caráter comunitário, ministerial e participativo da celebração
eucarística. Resgata-se o sujeito da ação eucarística como sendo a comunidade
eclesial, povo sacerdotal, corpo de Cristo (cf. SC 26 e 48). Reconhecem-se os
diferentes ministérios leigos na liturgia (acólitos, leitores, músicos,
instrumentistas, sacristão, comentarista, acolhida etc.) como verdadeiros
“ministérios litúrgicos”. E é impressionante como “Sacrosanctum Concilium”
realça a participação plena, consciente, ativa e frutuosa na celebração da
divina Liturgia como um direito e um dever de todos (cf. SC 14 e, sobretudo, SC
48).
3.9.
Resgata-se o sentido da ação eucarística como “comer e beber juntos em ação de
graças”.
3.10.Resgata-se
a necessidade de a celebração da Eucaristia se adaptar às diferentes culturas e
índoles dos povos, com sua linguagem verbal, gestual e musical próprias (cf. SC
37-40).
3.11.
Resgata-se a “nobre simplicidade” da liturgia eucarística de nossa tradição
romana do primeiro milênio (cf. SC 34). Isto é, trata-se de garantir o
essencial: a Palavra e o mistério pascal. Há uma tendência hoje (precisamente
por causa de uma mentalidade viciada que herdamos de todo um milênio passado)
de querer complicar tudo de novo, de inflacionar nossas missas novamente com um
monte de “adornos” e “entulhos” que só vem comprometer a visão daquilo que é
essencial na celebração da Eucaristia. Um exemplo só: Certas missas hoje são
tão barulhentas, do começo ao fim, com tanto canto, com instrumentos musicais
estridentes abafando as vozes do povo, com tanta fala e palavrório, tanto
ruído, tantos shows, que não se abre praticamente espaço para o
principal Participante “falar”, não se abre espaço para o Senhor se
manifestar..., precisamente na suavidade, na calma e no silêncio.
3.12.
Enfim, resgata-se a preocupação com a qualidade teológica, ritual, espiritual,
pascal da celebração eucarística. Daí a insistência na formação litúrgica em
todos os níveis (cf. SC 14-20). E quando dizemos “formação litúrgica”,
entende-se como um processo permanente de aprendizado e aprofundamento sobre o
sentido teológico-espiritual da ação celebrativa eucarística, do qual deve brotar
naturalmente um comportamento solidário dentro da sociedade, segundo a justiça
do Evangelho[6]. Graças
a Deus, hoje está havendo um despertar para a necessidade de tal formação em
muitas de nossas comunidades.
4.
Concluindo
Creio que (depois de refletir
sobre a reforma ‘eucarística’ do Concílio Vaticano II vista dentro do contexto
histórico geral da Liturgia) ficou claro o por quê desta reforma. E já dá para
ir percebendo também as dificuldades atuais na implantação da reforma. Afinal,
herdamos uma prática e compreensão de Eucaristia com sérios deslocamentos de
eixo, que vem de todo o milênio passado, e que, portanto, está enraizada no
nosso inconsciente. E, então, fica em aberto, a saudável preocupação: E agora,
daqui para frente?!... O que fazer? O caminho está aberto, com certeza cheio de
necessárias tensões.
Enfim, no sentido atiçar
ainda mais a preocupação e o desejo evangelizar dentro do espírito do Concílio
Vaticano II, convém também perguntar: Em que pé estamos? O que já assimilamos
nestes 40 anos da teologia e da prática do concílio e o que não? Quais são os
resquícios daquela teologia eucarística deslocada de eixo (do segundo milênio)
que existem por aí? Que providências vamos tomar para adiantar o passo? Afinal,
o que nós agora vamos fazer?
Para eventual aprofundamento
ALDAZÁBAL José. A Eucaristia. Petrópolis, Vozes,
2002.ALVES MELO Antonio. A presença do Senhor na eucaristia: mistério no mistério. Considerações históricas, teológicas e pastorais. In: REB, Petrópolis, 64, fasc. 254, 2004, p. 337-361.
BASURKO X. & GOENAGA J. A. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO Dionísio (Org.). A celebração na Igreja 1: Liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo, Loyola, 1990, p. 37-160.
BECKHÄUSER Alberto. Novas mudanças na missa. Petrópolis, Vozes, 20035.
BUYST Ione. Eucaristia: Uma nova prática e uma nova teologia. In: Revista de Liturgia n. 172, 2002, p. 4-8.
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MELO José Raimundo de. A participação da assembléia dos fiéis na celebração eucarística ao longo da história: e-volução ou in-volução? In: Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, 32, 2000, p. 187-220.
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VV.AA. A Eucaristia. Teologia e história da celebração (= Anámnesis 3). São Paulo, Paulinas, 1987.
* Frei José Ariovaldo da Silva é frade
franciscano, doutor em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico “Santo
Anselmo” de Roma. Atualmente é professor de Liturgia no Instituto Teológico
Franciscano, em Petrópolis (RJ). Também assessora cursos de Liturgia
(Atualização, Especialização) na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora
da Assunção, em São Paulo. É membro da Associação dos Liturgistas do Brasil
(ASLI), da qual foi primeiro presidente. Faz parte da equipe de reflexão da
Dimensão Litúrgica da CNBB. Faz conferências e presta assessoria em cursos,
seminários e semanas de Liturgia em paróquias e dioceses pelo Brasil afora.
Publicou O movimento litúrgico no Brasil.
Estudo histórico (Petrópolis, Vozes, 1983) (= sua tese doutoral), e O domingo, páscoa semanal dos cristãos. Juntamente
com Ione Buyst publicou O mistério
celebrado: memória e compromisso (= Coleção Livros Básicos de Teologia 9)
(Valencia/Espanha – São Paulo, Siquem – Paulinas, 2003). Juntamente com Pe.
Marcelino Sivinski organizou a publicação Liturgia,
um direito do povo (Petrópolis, Vozes, 2000). Tem colaborado em várias obras coletivas, bem
como para as revistas Grande Sinal
(Petrópolis), REB (Petrópolis), Revista de Liturgia (São Paulo).
Atualmente escreve mensalmente um artigo relacionado à Liturgia para a revista Mundo e Missão (São Paulo).
[1]
Para maiores detalhes históricos, cf. BUYST Ione & DA SILVA José Ariovaldo.
O mistério celebrado: memória e
compromisso
(= Coleção Livros Básicos de
Teologia 9) (Valencia/Espanha – São Paulo, Siquem – Paulinas, 2003).
[2] Cf.
GIRAUDO Cesare. Num só corpo. Tratado mistagógico sobre a eucaristia.
São Paulo, Loyola, 2003, p. 7-13; id., Redescobrindo a eucaristia. São
Paulo, Loyola, 2002, p. 9-11.
[3]
Cf. GIRAUDO Cesare. Num só corpo..., op. cit., p. 1-7.; id., Redescobrindo
a eucaristia, op. cit., p. 8-9.
[4] Cf. SILVA José Ariovaldo
da. Missa-memória. Missa-homenagem. In:
Mundo e Missão, São Paulo, n. 77, novembro 2003, p. 34-35.
[5] Id. Eu te adoro, hóstia
divina. A propósito da adoração ao Santíssimo Sacramento e a missa. In: Revista
de Liturgia, São Paulo, n. 166, 2001, p. 4-5; Grande Sinal, Petrópolis,
55, 2001, p. 437-443; id. Missa e adoração ao Santíssimo Sacramento. Aprendendo
da História. In: Mundo e Missão, São Paulo, n. 77, novembro 2003, p.
34-35.
[6]
Cf. o que maravilhosamente lembra o papa João Paulo II em sua Carta
Apostólica “Mane nobiscum, Domine” (= Coleção “A voz do Papa” 187). São
Paulo, Paulinas, 2005, nn. 27-28, p. 30-32.
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