sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O Concílio Vaticano II - segundo avaliação do liturgista Andrea Grillo

O Concílio Vaticano II foi um evento linguístico. Entrevista especial com Andrea Grillo




 
“O cerne da questão é: estamos ainda convencidos de que a “participação ativa” de todos os batizados na única ação ritual é o ponto de virada para a consciência eclesial do novo milênio?”, pergunta o teólogo italiano.

Para o teólogo Andrea Grillo, o Concílio Vaticano II é um “grande ato profético com o qual a Igreja tentou retomar o fio da sua melhor tradição, superando a crise de identidade que os séculos XIX e XX haviam profundamente manifestado”. Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o estudioso argumenta que o Concílio buscava “restituir à liturgia toda a riqueza que a tradição havia experimentado nela”.
Por isso, acentua, “teve que pensar grande não apenas segundo as lógicas do segundo milênio, mas também segundo as do primeiro milênio. Por isso ele falou uma linguagem muito mais bíblica e patrística do que sistemática; pensou mais em termos de experiência comunitária do que nos termos de ‘salvação da alma’”. E vale-se de uma afirmação do historiador norte-americano O’Malley, ponderando que esse evento foi, acima de tudo, um “evento linguístico”.
Andrea Grillo (foto ao lado, com seus dois filhos Fonte: http://andreagrillo.altervista.org/) é filósofo e teólogo italiano, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano de Ancona e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Desde 2007, leciona como professor convidado na Faculdade Teológica de Lugano, e, desde 2008, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália.

Teólogo, liturgista e professor de Santo Anselmo de Roma - Andrea Grillo

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que análise o senhor faz do Concílio Vaticano II, aberto pelo Papa João XXIII em 11 de outubro de 1962, a partir da perspectiva litúrgica?
Andrea Grillo – O Concílio Vaticano II, considerado 50 anos depois sobre o plano do seu “magistério litúrgico”, aparece verdadeiramente como um grande ato profético com o qual a Igreja tentou retomar o fio da sua melhor tradição, superando a crise de identidade que os séculos XIX e XX haviam profundamente manifestado. Obviamente, a 50 anos de distância, permanece intacta – e talvez ainda mais urgente – a necessidade de compreender até o fim a intenção “tradicional” do Concílio. Assegurar a continuidade da tradição mediante algumas abençoadas “descontinuidades”. Acerca disso, nos últimos anos, a consciência eclesial entrou em dificuldades, perdeu a lucidez. Ao menos nas suas cúpulas. O cerne da questão é: estamos ainda convencidos de que a “participação ativa” de todos os batizados na única ação ritual é o ponto de virada para a consciência eclesial do novo milênio?

IHU On-Line – Qual é o sentido e a importância da reforma litúrgica que foi promovida pelo Concílio, para a caminhada da Igreja?
Andrea Grillo – Justamente para a vida da Igreja de hoje e de amanhã é importante, sobretudo, amadurecer uma consciência lúcida sobre esse fato: a Reforma Litúrgica foi – e continua sendo – um ato de serviço à possibilidade de que toda a Igreja, em todas as suas expressões, possa sempre recomeçar e se culminar (fons et culmen) em uma ação simbólico-ritual de comunhão com o seu Senhor Jesus. Restituir aos ritos a primeira e a última palavra: esse foi o grande propósito que a Reforma se prefixou e que, hoje, põe em jogo as boas (ou más) intenções de todos aqueles que, no rito, devem se perder para se reencontrar, devem “tomar a iniciativa de perder a iniciativa”, como escreveu o grande filósofo Marion . Nessa “espoliação de si”, a liturgia espera muito de clérigos e de leigos, de homens e de mulheres.

IHU On-Line – A partir do Vaticano II, que perspectivas litúrgicas se abriram?
Andrea Grillo – No discurso com o qual Paulo VI inaugurou a segunda sessão do Concílio em setembro de 1963 – a sessão da qual brotaria o texto definitivo da SC [Sacrosanctum Concilium] –, ele afirmava que a Igreja com o Concílio devia dar a melhor expressão ao que pensa de si mesma. A redescoberta de que, na ação litúrgica, “continua a obra da redenção”, continua o “ofício sacerdotal de Cristo”, se institui uma experiência de comunhão, de louvor, de ação de graças, de bênção, que nela todos os batizados descobrem o “dom” de serem convidados e que toda a Igreja se desdobre marcada por esse ministério de anúncio do Evangelho: toda essa perspectiva de compreensão da liturgia parece ser capaz de renovar profundamente não tanto a própria liturgia – que, contudo, tinha uma grande necessidade disso –, mas sim a qualidade das relações eclesiais, do estilo espiritual e da vida testemunhal dos discípulos de Cristo.

IHU On-Line – Dentre os objetivos relativos à liturgia (Sacrosanctum Concilium), o Concílio propôs um resgate de importantes princípios litúrgicos das primeiras comunidades cristãs. Que princípios eram esses e qual foi a importância de resgatá-los?

Andrea Grillo – Evidentemente, o Concílio, ao visar a restituir à liturgia toda a riqueza que a tradição havia experimentado nela, teve que pensar grande não apenas segundo as lógicas do segundo milênio, mas também segundo as do primeiro milênio. Por isso ele falou uma linguagem muito mais bíblica e patrística do que sistemática; pensou mais em termos de experiência comunitária do que nos termos de “salvação da alma”; olhou positivamente para a riqueza das diferenças, em vez de negativamente para a alteração da verdade; escolheu a profecia de “ventura” contra os profetas da desventura; fez prevalecer a redescoberta do uso em lugar da denúncia do abuso. Desse ponto de vista, não há no Concílio nenhuma tendência “arqueológica”, mas sim um interesse fundamental pelo enriquecimento de uma prática ritual que havia assumido estilos, palavras e formas fechadas demais, autorreferenciais demais e, muitas vezes, sem mais capacidade de comunicação.

IHU On-Line – Entre esses princípios, o senhor poderia aprofundar a categoria de ‘mistério pascal’? Quais os desdobramentos desse conceito para a reflexão teológica e pastoral?
Andrea Grillo – As consequências dessa redescoberta são, ao mesmo tempo, institucionais e espirituais. Do ponto de vista institucional, a recuperação da centralidade da categoria de “mistério pascal” recolocou no centro da experiência eclesial o dom da graça recebido por todos, ao mesmo tempo por clérigos e leigos. Ao redimensionamento das pretensões de uma societas perfecta, correspondeu a redescoberta da qualidade espiritual da vida laical, marcada também por uma relação estrutural – batismal e eucarística – com o mistério pascal. Para favorecer esse desenvolvimento, no entanto, a Igreja apenas começou a desenvolver novas formas de linguagem e novas formas de relação. Aqui tem razão o historiador norte-americano O’Malley: o Concílio foi acima de tudo um “evento linguístico”. Ele modificou o modo de se expressar da Igreja. E, contudo, como a linguagem não é só expressão, mas também, e sobretudo, experiência, ele modificou a experiência da Igreja, contanto que permaneçamos conscientes de poder e ter que mudar de linguagem.

IHU On-Line – Qual a importância da celebração comunitária, na perspectiva do Vaticano II?

Andrea Grillo – O Concílio Vaticano II, retomando algumas intuições importantes elaboradas pelo Movimento Litúrgico ao longo dos séculos XIX e XX, começou, com autoridade, a superar um “paradigma individualista” da relação com Cristo e com a Igreja. Tal paradigma havia brotado do impacto entre o modelo clássico e tradicional de vida cristã e o mundo moderno. Se o Concílio de Trento havia – em 1500 – favorecido a passagem “da comunidade ao indivíduo”, 400 anos depois, o Vaticano II demarcou a retomada do primado da comunidade sobre o indivíduo. Isso significou um reequilíbrio profundo e complexo entre vida espiritual, estruturas institucionais e ações rituais. Tal processo de calibragem ainda está em plena elaboração e implica grandes sacrifícios, seja para os indivíduos, seja para as comunidades, mas também oportunidades muito grandes.

IHU On-Line – Para a vivência celebrativa, qual o significado e o alcance da Igreja ‘Povo de Deus’ e da Igreja ‘Comunhão’?
Andrea Grillo – A compreensão da Igreja como “povo de Deus” e como “comunhão” com o Pai mediante o Filho no Espírito começou, lenta mas irreversivelmente, a modificar a perspectiva de toda celebração litúrgica, mudando profundamente o modo de pensar e de experimentar os dados mais basilares da celebração. Pense-se na tríade clássica com a qual pensamos o sacramento: forma, matéria e ministro. Para a concepção clássica e também pós-tridentina, havia sacramento válido quando o ministro competente pronunciava a fórmula sobre a matéria. Agora, tudo isso é muito parcial e unilateral. A forma não é mais, sobretudo, fórmula, entendida como uma série limitada de palavras “sagradas”, mas é toda a sequência ritual. A matéria não é mais um objeto quimicamente definido, mas é um bem histórica e simbolicamente determinado. O ministro não é um cargo singular, mas está articulado na relação complexa e rica entre presidência, ministérios e assembleia. Essa releitura, como fica evidente até mesmo por essa breve referência, leva a uma expressão muito mais rica e articulada, que determina – inevitavelmente, de geração em geração – uma experiência litúrgica e eclesial diferente.

IHU On-Line – Numa análise geral, como a Igreja pós-conciliar levou a efeito as decisões do Concílio, particularmente ao que se refere à liturgia?
Andrea Grillo – A “recepção” do Concílio Vaticano II teve uma história muito diferenciada, já na Europa e depois todo o restante dos continentes. Em geral, podemos considerar que houve uma orientação de profunda convicção nas escolhas conciliares, que chegou até os últimos anos do papado de João Paulo II. Justamente nestes últimos anos (digamos, a partir do Jubileu do ano 2000), manifestaram-se alguns sinais de menor convicção, sobretudo por parte da Cúria Romana, mas aqui e acolá, também na periferia. Além disso, os últimos anos também viram manifestar um conflito de interpretações bastante significativo que ainda não conseguiu pôr em questão os dados irreversíveis de uma “reforma” litúrgica que, em grande parte da Igreja, se tornou um fenômeno capilar, irrefreável e fecundo, determinando uma mudança profunda tanto das formas de vida como das experiências formativas dos cristãos do terceiro milênio.

IHU On-Line – Levando em conta as recentes decisões de Bento XVI, dentre outras, em reintegrar os seguidores do bispo tradicionalista Marcel Lefebvre, em retomar ritos litúrgicos de tradição tridentina, como o senhor analisa atual momento da Igreja?
Andrea Grillo – A resposta à pergunta anterior já se encaminhava para essa questão posterior. Como fica evidente, esse desenvolvimento, motivado pela nobre intenção de favorecer uma comunhão mais ampla na Igreja, determina muitas vezes um fenômeno diferente, quando não oposto. Ou seja, não produz de fato mudanças significativas na relação com o tradicionalismo, mas concede renúncias no plano geral em torno de princípios não disponíveis, introduzindo fatores de nova e generalizada dilaceração no corpo universal da Igreja. Quero dar um exemplo. Se um documento de 2007 afirma, de modo geral, que todo padre, sem necessidade de nenhuma autorização, quando celebra sem povo, pode utilizar indiferentemente o rito ordinário ou o rito extraordinário, introduz-se sub-repticiamente na Igreja ao mesmo tempo um princípio de “anarquia do alto” – como chamou o grande vaticanista Zizola – e se subverte o primado da “missa com o povo”, trazendo novamente à tona uma espécie de autonomia do clero com relação à assembleia, o que constituiria uma negação explícita da reforma desejada pelo Vaticano II. Nesse caso, poder-se-ia falar de uma nova contestação dirigida ao Concílio, que minaria a própria ideia da “necessidade” da Reforma Litúrgica, transformando-a em uma espécie de “opcional” com relação ao qual a tradição poderia tentar se imunizar completamente. Como fica evidente, essa conclusão não estaria muito distante das posições que os tradicionalistas sustentam há 50 anos. Mas o acordo que eventualmente se obteria constituiria, de fato, uma negação do caminho percorrido comunitariamente nesses 50 anos.

IHU On-Line – Tendo presente o atual contexto de Igreja e de mundo, ao celebrarmos os 50 anos de abertura do Concílio, o que é importante ser resgatado e que pode ajudar a própria Igreja a se abrir aos novos desafios?

Andrea Grillo – No contexto eclesial e civil contemporâneo, a retomada da “profecia conciliar” constitui um desafio de muito valor para os cristãos de 50 anos depois. Profecia significa acima de tudo “esperança”. E, como já diziam os antigos, o contrário da esperança é tanto o desespero como a presunção. As tentações que hoje afligem a Igreja mais facilmente – tanto na sua cúpula como na sua base – é uma perigosa mistura desses dois “vícios”. Desesperar-se com a Igreja pós-conciliar e ter a presunção de encontrar no pré-Concílio as soluções já prontas para a nossa condição crítica é um pecado que, hoje, está muito ao alcance das mãos, quase aconselhável!
Por outro lado, o sentimento mais perigoso da Igreja de hoje é o medo. Por medo, nos encastelamos em evidências que se tornaram não evidentes nesse meio-tempo; por medo, nos consolamos com as pequenas coisas de antigamente; por medo, não descontentamos ninguém e acabamos descontentando a todos; por medo, assumimos mais facilmente a atitude do julgamento em vez do da comunhão. Para remediar essa arriscada situação de fechamento litúrgico e eclesial, devido essencialmente a um excesso de medo, pode ser útil começar a partir da documentação histórica: mostrando que a Igreja chegou a identificar o seu próprio percurso de Reforma Litúrgica na base de uma crise ritual e sacramental que ela experimentava já desde a primeira metade do século XIX. Mesmo um simples exercício da memória como esse pode ser capaz de desligar aqueles mecanismos de generalização e de falsificação que impedem de captar a profecia conciliar pelo seu lado justo e, ao contrário, tendem a confundir as causas com os efeitos, responsabilizando o Concílio Vaticano II por aquela crise que é ao menos 100 anos mais velha do que ele, esquecendo que os problemas litúrgicos não começam com o Concílio, mas, no mínimo, com o Concílio começam a ser resolvidos.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Entrevista sobre o Concílio Vaticano II

A caixa aberta: aproximação ao Concílio Vaticano II


A caixa aberta: aproximação ao Concílio Vaticano II

Entrevista com Alfredo Bronzato
Exiba 292036_152242184857389_100002148265989_288150_2729729_n.jpg na apresentação de slides
Alfredo Bronzato é bacharel e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Entre os dias 29 de maio e 1º de junho passado, participou do XIII Simpósio Nacional da Associação Brasileira de História das Religiões, realizado na Universidade Federal do Maranhão (UFMA); e no dia 28 de julho corrente irá ministrar a palestra “Panorama Histórico do Concílio de Trento” por ocasião do II Seminário de Liturgia do Vicariato Episcopal Oeste, cujo mote é “Celebrando os 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II”.
Prof. Alfredo, como você avalia do ponto de vista histórico o Concílio Vaticano II?
Quando se trata de abordar um concílio do ponto de vista histórico, deve-se, antes do mais, ter em mente que ele é simultaneamente um ponto de chegada e um ponto de partida: recolhe a experiência eclesial de um certo período e, à sua luz, confirma ou redireciona a vivência cristã – não modificando aquilo que é o núcleo precioso e inegociável da fé que guarda e prega, fé que recebeu dos santos apóstolos, mas fazendo-a inteligível e pertinente aos tempos que se põem. Foi assim em toda a milenar história do movimento cristão, de Nicéia ao Vaticano II. Um concílio deve, portanto, ser entendido não apenas em função dos movimentos intestinos da estrutura eclesial em um dado momento, mas também em relação com o que acontecia extra muros quando de sua convocação, realização e aplicação.
Para usar uma frase de impacto, o Vaticano II foi uma resposta positiva do catolicismo à modernidade. Quando uso este adjetivo para qualificar a relação entre o catolicismo e a modernidade não quero atribuir a ele um valor moral, afirmando que o Vaticano II foi uma resposta boa ao mundo moderno, mas quero recuperar um outro significado do termo positivo: o Concílio Vaticano II foi uma resposta construtiva, baseada em fatos dados, a um mundo que havia experimentado talvez mais mudanças nos últimos cento e cinquenta anos do que nos quinhentos ou mil anos precedentes. Deste ponto de vista, o Concílio Vaticano II foi inverso ao Concílio Vaticano I, que, em linhas gerais, recusou-se ao diálogo com a modernidade e foi marcado por tendências centrípetas, por uma tentativa de fechar a Igreja – e Igreja compreendida quase que só em termos de hierarquia sacerdotal – em torno de si mesma. Por outro lado, sob este mesmo prisma, pode-se interpetar o Vaticano II como uma continuação possível do Concílio de Trento, que trouxe para a vida da Igreja como elementos constitutivos fenômenos que são tipicamente modernos, como a valorização geral da disciplina e do imperativo missionário, não mais restritos a círculos monásticos, de pessoas tidas como especiais, como essencialmente distintas das outras.
Creio que a grande questão do Concílio Vaticano II – e que ainda deve ser a nossa – é como se pode ser católico não apenas depois que certa filosofia proclamou a morte de Deus, mas como se pode ser cristão depois que as atrocidades do imperialismo, as duas grandes guerras, os campos de concentração, as bombas atômicas e certos arranjos econômicos internacionais que condenam milhares à vergonha e à fome, proclamaram a morte do homem. Reafirmar com ainda mais veemência que a Igreja era uma sociedade perfeita, que não precisava do mundo para nada, insistir apenas nos aspectos mais individualistas da fé cristã, nas devoções, em certa escatologia, seria pecar por omissão, e, portanto, trair a missão que têm os cristãos de ser sal da terra e luz do mundo.
A velha instituição havia aparentemente resistido bem ao choque da Segunda Grande Guerra Mundial: os seminários eram numerosos, ainda que fosse preocupante a queda das vocações; os bispos continuavam em seus lugares, informados e eficientes; a frequência aos sacramentos declinava tão lentamente que se imaginava ser esta uma tendência passageira… Sustentava-se, portanto, o mesmo tipo de ilusão de vitalidade que os encantados tradicionalistas de hoje sustentam quando apontam um certo tradicionalismo das igrejas locais da África e da Ásia como contraponto ao desânimo dos católicos de paragens que nos últimos séculos foram marcadas por uma grande presença institucional da Igreja; como se elas não fossem passar pelos mesmos problemas que o Velho Mundo católico passou e passa. Como eu escrevi, a Igreja de modelo tridentino havia resistido bem apenas aparentemente. Houve resistências heróicas ao totalitarismo nazista, gestos corajosos que não podem ser esquecidos, mas muitos eram os que, com certa razão, questionaram publicamente a atitude de certos membros do episcopado diante da Ocupação hitlerista. Na França, por exemplo, apenas seis bispos opuseram-se publicamente à legislação contra os judeus e à política de colaboração com a Alemanha de Hitler – colaboração na qual se enganjaram, aliás, importantes setores da tradicional direita católica francesa. O cardeal-arcebispo de Paris, por outro lado, foi proibido por Charles de Gaulle de participar da cerimônia comemorativa da vitória, realizada na Catedral de Notre-Dame, por ter dado apoio público ao governo do Marechal Pétain…
Houve uma tendência a esquecer esta fissura entre conformismo e resistência (que também se verificou nas relações entre a Igreja Católica e as ditaduras civil-militares latino-americanas), mas um difuso mal-estar se elevou dela. O mesmo cardeal-arcebispo de Paris foi um dos que reconheceu que havia qualquer coisa de novo que deveria ser levado em consideração pela Igreja: no seu livro Avanço ou declínio da Igreja ele constatou a crise das vocações, o avanço rápido da indiferença religiosa e o surgimento de uma cultura operária cuja gramática as autoridades católicas desconheciam. Muitos padres e bispos reconheceram as regiões sob seus cuidados nesta análise, e este pequeno volume foi traduzido quase que imediatamente para as principais línguas do planeta. Na França criou-se uma importante Missão Interior: destacaram-se padres das paróquias para que mergulhassem inteiramente no mundo operário, vivendo como leigos, morando nas periferias, trabalhando nas fábricas, tendo como único objetivo serem reconhecidos pelo que eram por seus companheiros de trabalho, dando testemunho desta forma da Mensagem do qual se faziam portadores. Muitas outras iniciativas semelhantes foram experimentadas mundo afora, principalmente na Itália, na Inglaterra e na América Latina. Tratou-se de uma experiência límitrofe, que acabou gerando abusos. Roma logo se conscientizou dos riscos teológicos e políticos envolvidos e fez com que se interrompesse o empreendimento dos padres-operários em 1954; quase dois terços dos cĺérigos nele envolvidos pedem após seu término sua volta ao estado leigo. Encontraremos um esquema análogo na época do Papa João Paulo II, quando se colocou com maior força o problema das teologias ditas da libertação, mas o que quero destacar é que os franceses, com alguma falta de tato, assinalaram que havia uma questão urgente e ainda sem solução: a da relação entre a Igreja enquanto instituição e o novo mundo que surgia diante de seus olhos e longe de seu abraço.
É nesse momento de crise – e, como nos ensina Teilhard de Chardin, a crise não é necessariamente uma ruptura, mas uma situação que nos obriga a (re) pensar –que encontramos o homem certo no lugar certo.
Quando Angelo Roncalli sucedeu o Papa Pio XII – que foi uma figura cada vez mais isolada, que com a idade foi se aferrando mais e mais à compreensão de que a Igreja deveria permanecer exatamente onde estava – pensava-se que ele seria um moderado e aceitável Papa de transição. O gorducho e bonachão Patriarca de Veneza – que não era um teólogo ou um burocrata, mas historiador (estudioso da vida de Carlos Borromeu), diplomata e pastor – entretanto, não temia a mudança e recusava vivamente a visão daqueles que viam apenas ruína e calamidade ao seu redor. Erguendo a bandeira da esperança contra o – até certo ponto muito justificado – pessimismo de alguns líderes eclesiásticos, o Papa João XXIII valorizava a sensibilidade democrática e a liberdade de consciência que são características do mundo contemporâneo, e acreditava na capacidade do ser humano mudar o mundo para melhor. Sabia também que, às vezes, é necessário se mudar muito para se permanecer o mesmo, e que se a Igreja Católica quisesse ser fiel à sua missão era necessário participar das alegrias e angústias dos homens e mulheres dos novos tempos, sendo, entre eles, sinal de esperança e fermento de transformação. Contra forte e persistente oposição por parte da Cúria Romana, convocou um concílio geral para reavaliar o papel da Igreja no mundo, rompendo com a visão triunfalista (e míope) que, reelaborando o argumento agostiniano, tanto havia marcado o catolicismo no século anterior com a afirmação de que a humanidade se separava em dois mundos: a Cidade de Deus, encastelada no Vaticano, e a Cidade de Satanás, o assim chamado “mundo moderno”, com seus apóstatas, hereges e cismáticos.
Diversos setores eclesiais reagiram com ceticismo com relação à possibilidade e à necessidade de um novo concílio ecumênico; perguntavam-se: por que convocar um se o Papa havia sido nomeado infalível menos de cem anos antes? Da mesma forma reagiram os governos seculares e outros setores sociais. Antes da realização do Concílio adiantou-se a Cúria na preparação dos documentos, muitos dos quais foram rejeitados ou inteiramente reformulados nas sessões conciliares pelo episcopado reunido. Os bispos do mundo inteiro foram consultados acerca de quais assuntos deveriam ser abordados nesta imprevista reunião, e, se grande parte deles se calou (não se sabia, afinal, se era o caso de algum teste de ortodoxia e fidelidade), houve posicionamentos interessantíssimos – como, por exemplo, o de D. Afonso Ungarelli, MSC, responsável pela Prelazia de Pinheiro, no norte do Maranhão. D. Ungarelli, que era químico formado, um homem prático, percebeu com acuidade a importância do momento histórico que vivia e fez recomendações a Roma sobre a necessidade de se traduzir o breviário e os ritos dos sacramentos para que a Igreja se fizesse entender mesmo entre os caboclos maranhenses…
Quando, em 11 de outubro de 1962, os 2.500 padres conciliares entraram em procissão no Vaticano o espetáculo foi impressionante para os observadores externos e internos: nunca se havia assistido semelhante reunião, a uma assembléia de mitrados de tão diversas cores e idiomas. Não se tratou de um concílio europeu, como boa parte dos concílios do segundo milênio do cristianismo, mas de um concílio ecumênico no sentido forte e primeiro da expressão, como os grandes concílios da Antiguidade Tardia. 33% dos participantes provinham da Europa Ocidental, incluídos aí os membros da Cúria Romana; 13% eram oriundos dos Estados Unidos e do Canadá; 22% da América Latina; 10% da Ásia; 10% da África Negra; 3,5% do mundo árabe; 2,5% da Oceania. Por razões políticas, as lideranças católicas cujos rebanhos estavam em países comunistas foram subrepresentadas: apenas 14 dos 27 bispos iuguslavos; 20 dos 65 poloneses; 4 dos 8 alemães orientais; 2 dos 16 húngaros; 3 dos 15 tchecos; e nenhum bispo russo, romeno, chinês ou norte-vietimanita. Diante deste grupo heterogêneo, João XXIII manifestou-se de maneira claríssima: afastou-se dos profetas da desventura, fez o elogio da misericórdia contra a pregação da severidade, eximiu-se de proferir condenações e anátemas, expressou seu desejo pela unidade ecumênica, com os fiéis não-cristãos e com todo o gênero humano, pediu que o Concílio não fosse uma reunião intestina, mas que correspondesse às necessidades dos diversos povos.
Pode-se fazê-lo remontar a antes disto, mas, de uma forma geral, este é o começo da história do Concílio Vaticano II…
O Papa João XXIII participa da celebração da Divina Liturgia de São João Crisóstomo durante o Concílio Vaticano II. (Imagem copiada de: http://tinyurl.com/d4rr78b).
 
O Concilio Vaticano II promoveu muitas mudanças na Igreja e, com elas, novos desafios surgiram. Quais mudanças e desafios o senhor destacaria?
Comecemos pelas mudanças de cúpula, literalmente. Com o Concílio Vaticano II, o centralismo romano, bem estabelecido fazia séculos, teve de ceder diante dos episcopados – o que, aliás, está plenamente de acordo com as mais antigas tradições da Igreja. Citarei um único exemplo, mas um exemplo muito significativo. Depois do período das Cruzadas algumas Igrejas Cristãs Orientais entraram em plena comunhão com a Igreja Católica por várias razões. Menosprezadas por seus homólogos (e vizinhos) Ortodoxos como uniatas, elas também tiveram de enfrentar a ignorância e a desconfiança da parte da Cúria Romana, além de tentativas eventuais de romanização por parte de prelados de origem ocidental, normalmente apoiados por autoridades coloniais. Durante as sessões do Vaticano II o Patriarca Greco-Melquita Máximo IV Sayegh defendeu estas tradições orientais em alto tom, lembrando que catolicismo e latinismo não são sinônimos; recusou-se mesmo a falar em latim, alegando que não havia sentido nisto, pois as línguas litúrgica e pastoral de seu uso corrente eram o grego e o árabe. O Concílio reconheceu os cristãos orientais em comunhão com Roma não apenas como ritos, variações eclesiais exóticas que supostamente existiam apenas por liberalidade do Bispo de Roma, mas como igrejas verdadeiras, plenas, com uma teologia, uma espiritualidade, um governo eclesiástico e um direito canônico próprios.
Mais ainda: com o Vaticano II, o catolicismo enquanto instituição propôs-se a descer de sua cidadela e dialogar em pé de igualdade não apenas com os filhos diversos – como os católicos orientais – suas irmãs mais próximas – a Ortodoxia Grega e as confissões chamadas pré-calcedonianas – e irmãos mais velhos – os judeus – mas também com todos aqueles que poderiam ser considerados, poucos anos antes da convocação do Concílio, seus inimigos naturais – muçulmanos, protestantes, humanistas seculares, comunistas. Com o Concílio Vaticano a Igreja Católica de fato experimentou uma mudança significativa em seu perfil histórico, animada pelo duplo e convergente movimento da refontização (voltar às fontes dos primeiros dias do cristianismo) e do aggiornamento (“atualização”, ou seja, ler as fontes da fé à luz do tempo presente).
Quando se fala com raiva ou com saudosismo da Igreja Católica como a Igreja das cruzadas, das inquisições, da missionação violenta, da destruição das culturas não-européias, da rejeição ao pensamento científico, da pregação monomaníaca do inferno e da demonização do corpo, não se está falando – ou não se deveria estar falando – da Igreja Católica pós-Vaticano II, que define sua missão como a de transmitir a fé aos novos tempos ajudando a construir nestes o Reino de Deus. Trata-se de uma orientação que não é acessória para quem nas últimas décadas e hoje quer se chamar de católico. À luz desta consideração, desqualificar o Vaticano II como sendo apenas um concílio pastoral, tratando-o como se fosse uma espécie de concílio optativo, é prova de desconhecimento e má-fé: toda mudança pastoral pressupõe e causa uma mudança teológica e um dado contexto histórico; todo novo contexto histórico causará mudanças teológicas e pastorais; toda mudança teológica pressupõe e causa uma mudança pastoral em um dado contexto histórico; e mudanças deste tipo pontuam a história da Igreja e dão-lhe vitalidade. De fato, de um ponto de vista agnóstico (que deve ser a saudável perspectiva da historiografia acadêmica), ou seja, que não considere a Revelação cristã e, fiada nesta, creia que há a ação do Espírito Santo sobre a Igreja, é esta capacidade adaptativa do catolicismo –manifesta no Concílio Vaticano II – o que constitui a sua pertinência a tantas pessoas e coletividades por um período tão longo. Não se trata de coisa banal, a ser ignorada.
Por outro lado, eu não saberia responder se a Igreja Católica, hoje, realmente mudou no sentido que o Papa João XXIII desejava que ela mudasse quando convocou o Concílio Vaticano II. Os debates conciliares, a morte e sucessão de João XXIII, a busca pelos consensos necessários: tudo isto fez modificar o seu rumo original, como sempre acontece em eventos deste tipo, eventos em que há debate e em que se manifesta a divergência. Há ainda de se considerar as dificuldades de aplicação e a penetração variável em diferentes contextos eclesiais das decisões desta Assembléia, as posições refratárias em escalas diversas, as distorções das propostas conciliares, as recusas, as novas mudanças históricas. Além disso, o Concílio levantou muitas expectativas, mas deixou de lado muitos problemas que ainda esperam por solução. Qual deve ser a atitude diante dos que não estão dispostos a dialogar? Qual deve ser o nível de participação da Igreja enquanto instituição no processo político democrático? Qual o papel da liberdade de consciência e de expressão diante do posicionamento oficial ou oficioso da hierarquia eclesiástica em questões que não são de fé? Evidentemente, isso não desqualifica o Vaticano II, mas, ao contrário, ressalta a responsabilidade que os católicos têm hoje em relação ao patrimônio religioso que herdaram daqueles que os precederam na fé. A fé cristã, de alicerces bem estabelecidos, não é algo fechado, mas algo que se tece na prática e reflexão cotidianas dos tempos mutáveis. O passado é um cemitério de verdades abandondas (algumas justamente) e devemos hoje lidar com questões que não haveria como serem postas ou respondidas pelos santos apóstolos ou por nenhum dos concílios do passado – pessoas e eventos que devem lembrar-nos de nossas responsabilidades enquanto católicos para com a formação do rosto da Igreja em nossos dias.
Para encerrar, gostaria de citar um trecho do livro Tu és Pedro (Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001), interessante e acessível obra de síntese de história da Igreja, cujo autor, Georges Suffert, recentemente falecido, foi um personagem notável: jornalista e escritor francês, participou da Juventude Estudantil Católica e comprometeu-se publicamente com a denúncia das atrocidades cometidas pelos militares franceses quando das guerras de independência do Marrocos e da Argélia. Escrevendo a respeito do contexto histórico do Concílio Vaticano, Suffert lucidamente destacou que: “(…) Talvez tenhamos entrado, com a eleição de João XXIII, em um dos períodos mais surpreendentes da história da Igreja. Enfraquecida, conservadora, muitas vezes considerada moribunda por alguma das boas cabeças do século XIX, dividida contra si mesma, [com o Concílio Vaticano II] ela inicia uma espécie de ressurreição cuja importância e alcance muitos cristãos não avaliam. (…) Não que esse concílio tenha cumprido tudo o que prometeu; poder-se-ia até afirmar o contrário. Mas o abalo provocado dentro da imensa máquina eclesiástica modificou as regras do jogo. A Igreja não foi mais a mesma. (…) era preciso acreditar, com uma ingenuidade ou uma inteligência de santo, que o mundo esperava uma linguagem ao mesmo tempo muito antiga e totalmente nova. Ninguém pode prever aonde nos levará essa mutação da Igreja Católica. O impulso cairá tão depressa quanto surgiu? O movimento ecumênico vai se apagar ou, ao contrário, levar tudo o que estiver na frente? Nossos filhos assistirão à reunificação do cristianismo? E a humanidade do novo milênio constatará que sua vontade de confiança no homem não tem muito sentido se não se enraizar no antiquíssimo profetismo judaico-cristão?” (pp. 452-453.463).
Isto posto, prossegue o autor de Tu és Pedro: (…) O futuro permanece totalmente imprevisível. Mas o presente já permite entrever novos horizontes. Caminhamos todos juntos de um mistério a outro.” (p. 464).
Para saber mais:
FAGGIOLI, Massimo. Vatican II: the battle for meaning. Mahwah, New Jersey: Paulist Press, 2012. Resenha de: CALDEIRA, Rodrigo Coppe. “Vaticano II: a batalha pelo significado. Uma análise de Rodrigo Coppe Caldeira”. IHU-Online, 7 de julho de 2012. (Disponível online em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511178-vaticano-ii-a-batalha-pelo-significado-uma-analise-de-rodrigo-coppe-caldeira).
HORIZONTE –Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-MG. Belo Horizonte, v. 9, n. 24 (especial), dezembro de 2011 – Dossiê: “Concílio Vaticano II: 50 anos”. (Disponível online em http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/issue/view/152).
IGREJA GRECO-MELQUITA CATÓLICA. A Igreja Greco-Melquita no Concílio. Discursos e notas do Patriarca Máximo IV e dos prelados de sua Igreja no Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Loyola / Eparquia Melquita do Brasil, 1992. (Parcialmente disponível em: http://tinyurl.com/c776zon).
PAPA JOÃO XIII. “O discurso da lua”. Cidade do Vaticano, 11 de outubro de 1962. (Tradução de Pablo Lima e Tiago Freitas. Disponível em: http://www.patiodosgentios.com/espiritualidade/o-discurso-da-lua/).
PAPA JOÃO XXIII. “Discurso de Sua Santidade Papa João XXIII na Abertura Solene do SS. Concílio”. Cidade do Vaticano, 11 de outubro de 1962. (Disponível em tradução para o português em: http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council_po.html).
SUFFERT, Georges. Tu és Pedro: santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos 20 primeiros séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Tradução de Adalgisa Campos da Silva). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. (Parcialmente disponível