quinta-feira, 26 de julho de 2012

Cipriano Vagaggini: monge, teólogo e liturgista

Cipriano Vagaggini: monge, teólogo e liturgista

                           

Dom Cipriano Vagaggini, OSB Cam (1909 - 1999), pertence à fileira das preciosas testemunhas da fé, suscitadas pelo Espírito na Igreja do nosso tempo, tão simples na postura, e ao mesmo tempo, tão profundas no pensamento e na autenticidade da experiência do Senhor. Se alguém o tivesse encontrado sem conhecê-lo, poderia identificá-lo com um bom camponês das colinas da Itália central, tamanha a sua simplicidade de monge, sua postura nas relações e sua comunicação acolhedora. Mas se o mesmo tivesse escutado uma aula sua na faculdade teológica ou lido um dos seus numerosos ensaios e artigos, poderia afirmar ter encontrado um dos antigos sábios cuja memória não vai perecer.

Em 2009 foi publicado em português seu livro mais conhecido, “O sentido teológico da liturgia”, monumental obra de 843 paginas1, publicada no original italiano em 1957, na vigília do Concílio Vaticano II e já traduzida há anos nas principais línguas européias.

O que suscitou o interesse da editora em apresentar aos leitores brasileiros este livro como um precioso presente para o caminho litúrgico da Igreja e das comunidades hoje no Brasil? Na realidade ao manusear estas intensas páginas encontra-se não só o pensamento de um experiente teólogo do século 20, mas a consciência teológica e a experiência espiritual da Igreja, alimentadas desde sempre pela tradição espiritual dos pais e mães da Igreja e pela liturgia “cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, fonte donde emana toda a sua força” (SC 10).

Por décadas, depois do Concílio, a atenção de muitos agentes de pastoral litúrgica focalizou com generosidade e dedicação as mudanças nas formas rituais, como se isto tivesse sido o centro para alcançar aquela“plena, consciente e ativa participação das celebrações litúrgicas, que a própria natureza da liturgia exige e à qual, por força do batismo, o povo cristão (...) tem direito e obrigação”(SC 14).

Hoje, sabemos pela experiência, que isto era e ainda é necessário, mas não suficiente. É preciso descer mais profundamente no mistério de Cristo, celebrado com uma participação teologicamente iluminada e eticamente comprometida no seguimento de Jesus. A catequese litúrgica precisa se renovar e se fundamentar na riqueza teológica da Igreja para alimentar o caminho espiritual do povo, apontando para a fecundidade vital das mesmas celebrações litúrgicas.

O livro de Dom Vagaggini nos abre os tesouros da rica tradição teológica e espiritual da Igreja e ilumina os novos horizontes abertos pelo Concílio Vaticano II e as riquezas espirituais e pastorais oferecidas pela reforma litúrgica por ele promovida. O Concílio recolheu em admirável síntese o caminho da tradição da Igreja e abriu novos trilhos para que ela seja sempre “antiga e nova”, fonte de vida e pão vivo para o povo de Deus a caminho, até a vinda gloriosa do Senhor.


1. Monge e teólogo
Mas quem é afinal este irmão capaz de partilhar conosco o caminho da fé e da esperança e de iluminá-lo, neste momento em que a mesma reforma litúrgica está sofrendo desvios em consequência de posições superficiais de alguns e de contestação violenta de outros em nome da “tradição e da verdadeira reforma”?Quantos entre uns e outros conhecem de verdade e têm interiorizado a tradição litúrgica da Igreja e o sentido profundo da reforma do Concilio? Dom Vagaggini nos convida a levar a sério a herança da Igreja e seu caminho atual guiado pelo Espírito.

Nascido na Itália em 1909, Dom Cipriano foi iniciado na vida monástica na abadia beneditina de Bruges na Bélgica e formado nos estudos de filosofia e teologia nas universidades de Louvain (Bélgica), de Santo Anselmo e do Pontifício Instituto Oriental em Roma. Lecionou teologia dogmática e Liturgia no Pontifício Ateneo Santo Anselmo em Roma quase sem interrupção de 1942 a 1978, e por alguns anos na Faculdade de Teologia da Itália do Norte em Milão. Na faculdade de Santo Anselmo promoveu a fundação do Instituto Monástico (1952), do Pontifício Instituto Litúrgico (PIL - 1961) e da Especialização em teologia sacramentária (1971 -72). Em 1959 deu início aos Encontros entre monges e monjas beneditinos italianos, para promover um trabalho de colaboração para reelaborar as raízes teológicas e espirituais da vida monástica em diálogo com as novas perspectivas da cultura moderna e da vida da Igreja. Em 1968 promoveu a fundação da Faculdade Teológica da Itália do Norte em Milão para “abrir de maneira mais ampla as faculdades de teologia também aos que não são clérigos, homens e mulheres”2.

Na pesquisa e no ensino da teologia ele procurou harmonizar os aspectos filosóficos e históricos com a experiência espiritual, uma teologia sapiencial que reflete sobre a vida como primeiro lugar da manifestação de Deus, e é capaz de iluminá-la e alimentá-la.

Em 1977 se retirou definitivamente no Mosteiro e Sacro Eremitério de Camaldoli (Arezzo), continuando uma intensa pesquisa teológica na linha sapiencial, numa vida, circundada de silêncio e contemplação, animada pela oração e pela caridade fraterna. Nele o monge modelou o teólogo e o teólogo fundamentou o caminho espiritual do monge e ambos respiraram com o ritmo do coração da Igreja. A experiência cotidiana da liturgia das Horas (ofício divino) e da celebração da eucaristia, na comunidade monástica, alimentou o caminho de uma profunda elaboração teológica e espiritual sobre a mesma.

Ser monge, teólogo e liturgista, ser monge e professor, foi para Dom Cipriano uma experiência de progressiva unificação interior e de fecundidade intelectual e pastoral que o colocou em sintonia com o caminho de renovação espiritual, teológica e pastoral da Igreja e fez dele um autêntico animador do mesmo. Em seus escritos destaca, muitas vezes, que para tornar-se verdadeiros “mestres de liturgia” é preciso que os professores, assim como todo agente de pastoral, tenham não só uma boa preparação profissional mas sobretudo uma autêntica experiência interior.

2. O liturgista: O sentido teológico da liturgia.
Ao concluir um trabalho de pesquisa e de ensino durante 25 anos, em 1957, quando ainda ninguém imaginava o Concílio preanunciado pelo Bem-aventurado papa João XXIII no mês de janeiro de 1959, Dom Cipriano publicava “O sentido teológico da liturgia”.

Nesta obra ele apresenta a fundamentação teológica mais orgânica da liturgia, totalmente enraizada na tradição da Igreja e aberta a possível desenvolvimento. Verdadeiro anel de conjunção entre o movimento litúrgico anterior, a encíclica “Mediator Dei” do papa Pio XII (1947) e a Sacrosanctum Concilium (1963), apareceu como “novidade”, após séculos de esquecimento da dimensão teológica da liturgia que deu lugar a uma abordagem devocional da vida espiritual. O movimento litúrgico tinha aberto a estrada com um trabalho de quase um século, mas faltava uma proposta orgânica. Este foi o mérito primeiro de Vagaggini que antecipou as linhas fundamentais do Concilio.

“A Igreja vive uma história sagrada que é a história de Cristo, em Cristo mesmo e nos seus fieis. Cristo aparece sempre como o motivo fundamental de toda a liturgia, de toda a bíblia, de toda a história e de toda a vida do fiel”3. À base desta afirmação está a consciência de fé, elaborada pelos padres da Igreja desde o início, que a revelação de Deus é a história do seu amor e da sua aliança com Israel e através de Israel com toda a humanidade.

Ela alcança seu cumprimento em Cristo Jesus e no seu mistério pascal, que a Igreja celebra e vive na liturgia enquanto espera a vinda gloriosa do seu Senhor. Na liturgia a Igreja e cada um dos fieis participam no mistério pascal de Cristo e entra no movimento desta história de salvação, operando com a caridade de Cristo a transformação de si mesmo e do mundo, antecipando na esperança o cumprimento escatológico do reino de Deus. A vida das pessoas, assim reconduzida ao projeto original de Deus, se torna ela mesma um canto de louvor, uma eucaristia vivente para a glória de Deus Pai, Filho e Espírito Santo.

Existe perfeita unidade e continuidade entre AT e NT e a vida da Igreja: é a mesma e única história de amor de Deus para conosco, proclamada na escritura, celebrada na liturgia, realizada na vida fraterna. Os movimentos bíblico, patrístico e litúrgico, tinham progressivamente redescoberto esta visão da fé da Igreja. Dom Cipriano Vagaggini com sua visão genial, sustentada pela experiência monástica e por coerente argumentação teológica e histórica, a conduziu à unidade orgânica elaborando os fundamentos teológicos da liturgia no seu conjunto, como a salvação em ato, no hoje da história.

3. Precursor e colaborador do Concilio Vaticano II
Chamado a fazer parte da Comissão preparatória ao Concilio, Dom Vagaggini contribuiu na preparação da parte inicial do documento que tratava do “mistério da liturgia e da sua relação com a vida da Igreja”. Durante o Concilio participou ativamente na preparação da SC como assessor da Comissão de bispos encarregada de recolher e avaliar as sugestões dadas pelos bispos em assembleia.

O Proêmio e os primeiros sete números da SC constituem uma espécie de admirável síntese da teologia e da espiritualidade litúrgica. Aí se pode identificar com facilidade a direta e significativa contribuição de Dom Vagaggini, eco das suas ideias teológicas fundamentais4. No centro está a afirmação que na raiz da fé e da experiência espiritual da Igreja encontra-se a participação no mistério pascal de Cristo, centro da história da salvação, através da celebração memorial da eucaristia, dos sacramentos e da liturgia das horas.

Deste mistério a Igreja nasce e continuamente se alimenta (SC 5), na dupla mesa da Palavra e do pão eucarístico (SC 14), para que, como povo de Deus peregrino rumo à plenitude escatológica do Reino (SC 2 e 14), possa anunciar a todo mundo a palavra libertadora e renovadora do evangelho e transformar os fieis em evangelizadores viventes (SC 5-7). Por isso, a liturgia constitui o cume para o qual tende o caminho e a atividade apostólica e pastoral da Igreja, e a fonte de onde recebe a força vital do Espírito (cf. SC 10).

É a partir desta renovada visão teológica que se percebe como “a plena, consciente e ativa participação na celebração” (SC 14), constitua o objetivo da atividade pastoral da comunidade cristã e o lugar privilegiado da formação espiritual e do seu desenvolvimento, tanto para os presbíteros como para os leigos (SC 41). Pela mesma razão a comunidade paroquial e diocesana, encontram na celebração presidida pelo bispo, ou pelo presbítero a expressão mais significativa da sua unidade, alimentada pelo Espírito do Senhor (SC 41 e 43). A adoção da língua viva do povo assim como a reforma dos ritos foi julgada pelo Concílio como um instrumento indispensável para favorecer a participação profunda dos fieis (SC 48), todavia, destaca Vagaggini, a língua falada não basta para chegar ao objetivo da participação plena, pois é necessário que a pessoa na sua totalidade esteja sintonizada com o clima de oração e de disponibilidade ao Espírito do Senhor5.

Em dois capítulos fundamentais da sua obra, ele oferece elementos decisivos para encarar corretamente a vital questão da relação entre a liturgia e a espiritualidade. Tal questão tinha atormentado o movimento litúrgico sob os ataques dos que afirmavam que só nas práticas de piedade se podia experimentar a verdadeira devoção, pois, segundo estes, a liturgia com sua ritualidade constitui mais uma distração da mente. Hoje novos opositores da renovação litúrgica, representados por certos“grupos de oração”, afirmam ser a liturgia fria e impessoal. Dom Vagaggini oferece os critérios teológicos e pastorais da liturgia, se corretamente entendida e praticada, como lugar natural do caminho espiritual, até às experiências místicas mais elevadas, como o testemunha a história da espiritualidade, com alguns exemplos de excepcional valor, como o de Santa Gertrude, grande mística do séc. XIII6.

No mesmo Proêmio da SC se antecipam também alguns dos critérios teológicos centrais da eclesiologia da LG: natureza sacramental da Igreja em continuidade com a estrutura humana e divina de Cristo verbo encarnado (SC 2 e LG 1); centralidade do mistério pascal na vida da Igreja e no caminho espiritual do cristão (SC 5; 41 e LG 25). Aqui também se pode ver a mão de Vagaggini.

4. Contribuições para a atuação da reforma litúrgica
Quando o Concilio acabou, o monge beneditino foi nomeado pelo papa Paulo VI entre os membros do “Consilium” encarregado de viabilizar as linhas dadas pelo Concílio a respeito da reforma dos ritos.

Junto com outros teólogos e pastoralistas contribuiu na elaboração da instrução de Paulo VI, Eucaristicum mysterium (o mistério eucarístico), 1967, na qual o papa oferece preciosas indicações teológicas, espirituais e pastorais para colocar em prática na vida das pessoas e comunidades o ensino da sua precedente carta encíclica Mysterium fidei (o mistério da fé), 1965, sobre a eucaristia. Os dois documentos de Paulo VI põem com muita clareza e sabedoria a celebração da eucaristia no centro da vida pessoal e comunitária, e indicam as modalidades apropriadas para valorizar as variadas formas do culto eucarístico fora da missa, como continuidade e extensão da celebração.

No âmbito da reforma dos ritos da missa Dom Vagaggini deu quatro contribuições de alto valor.

a) Novas Orações Eucarísticas. Ofereceu as linhas fundamentais para a elaboração das Orações eucarísticas 3 e 4, depois que Paulo VI considerou ser melhor solução pastoral deixar o venerável Cânon Romano na sua estrutura histórica atual, apesar dos seus limites do ponto de vista litúrgico, e acrescentar novas Orações eucarísticas que melhor respondessem aos critérios litúrgicos e expressassem mais claramente a consciência teológica sobre a eucaristia evidenciada pelo Concilio.7 A proposta mais significativa de Vagaggini é sem dúvida a Oração eucarística 4 que, como as anáforas das Igrejas orientais, apresenta uma síntese da história da salvação e coloca a páscoa de Jesus e a celebração da eucaristia no seu centro e como sua meta. A constante celebração da páscoa na eucaristia sustenta a Igreja no seu caminho rumo à vinda gloriosa do Senhor que nela é antecipada na esperança. Infelizmente a oração eucarística 4 é pouco conhecida e menos ainda celebrada dando lugar “às mais breves” 2 e 3, enquanto pelo contrário seria uma fonte inesgotável de espiritualidade e de catequese eucarística e sobre o mistério da Igreja 8.

b) Novo Lecionário para a celebração da eucaristia. A contribuição de Vagaggini foi a indicação dos princípios teológicos e pastorais que inspiram a escolha e o uso das leituras na missa, segundo o pedido da SC 35 e 51:”para mais ricamente preparar a mesa da palavra de Deus para os fieis... os tesouros bíblicos sejam mais largamente abertos de tal forma que... se leiam ao povo as partes mais importantes da sagrada escritura”. O primeiro e fundamental critério é a unidade do AT e NT na pessoa de Jesus, centro e cume da história da salvação, que agora encontra sua plena realização na celebração do mistério pascal e na vida da Igreja e de cada fiel, por ele alimentado. Exemplo clássico desta relação vital: AT-NT (Cristo) – IGREJA, e da hermenêutica bíblica segundo o principio da leitura tipológica dos textos do AT, é a estrutura das três leituras dos domingos e das solenidades: a primeira leitura do AT, a terceira, um trecho do Evangelho lido com o critério da leitura semi-continua que determina a escolha do texto do AT na primeira leitura, e a segunda leitura habitualmente do apostolo ou de outro escritor do NT9.

c) Introdução da concelebração no rito romano e a comunhão sob as duas espécies do pão e do vinho. Os dois ritos estavam presentes de modo habitual no rito da Igreja grego-bizantina desde a antiquidade. Dom Vagaggini vivenciou durante anos esta tradição quando, jovem monge, foi vice-reitor do colégio grego-católico em Roma. Na discussão sobre a introdução da concelebração e a recuperação da comunhão sob as duas espécies teve a oportunidade de oferecer não somente seus conhecimentos científicos, mas também sua experiência.

Se a concelebração destaca a unidade do corpo dos presbíteros com o bispo, entre si e com o inteiro corpo da Igreja, a comunhão no pão e o vinho, também por parte dos fieis, em determinadas circunstâncias, restitui à celebração eucarística sua plenitude de sinal ritual de participação na ceia do Senhor e no seu sacrifício pascal.

5. Uma herança e uma tarefa para hoje
A intensa atividade acadêmica desenvolvida ao longo de 60 anos por Dom Vagaggini na pesquisa e no ensino da teologia, da liturgia e da espiritualidade, é um exemplo de quanto foi sério o seu estudo, profundo o seu caminho espiritual e viva a sua sensibilidade pastoral para a vida da Igreja e para a cultura do nosso tempo. Indica a via mestra para superar por um lado o risco de abordar de maneira meramente intelectual a teologia e o estudo da liturgia, e do outro a ilusão de um caminho espiritual que procure o próprio estimulo nos elementos mais exteriores dos ritos - novos ou tradicionais - ou num devocionalismo emocional sem profunda conexão objetiva com o mistério pascal de Cristo, fonte de toda vida no Espírito.

“O coração vivo da reforma litúrgica -escrevia Vagaggini - é exatamente a questão das relações entre liturgia e espiritualidade de um lado, e liturgia e pastoral do outro”10. E destacava ainda: “Enquanto o professor de liturgia não descobrir o seu valor espiritual, não conseguirá recolher pessoalmente seus verdadeiros frutos, nem se tornará autêntico apóstolo da liturgia” 11.

A experiência pessoal de Vagaggini, monge e teólogo, mostra que a unidade interior da pessoa, a partir da experiência pascal de Cristo a nós proporcionada pela escritura e pela liturgia, é possível não somente para os monges e religiosos(as), mas para cada cristão que procure mergulhar interiormente na palavra viva de Deus e no seu mistério celebrado.

No horizonte unitário das três grandes constituições do Concilio, DV, LG, SC, o mistério do Senhor morto e ressuscitado, interiorizado na Palavra recebida com fé e celebrado na liturgia, atua no corpo vivo da Igreja e da história para o crescimento contínuo das pessoas e do mundo num processo de transformação até o mundo novo do éscaton.

No meio das dificuldades para enraizar mais profundamente no tecido da vida das comunidades a árvore da reforma litúrgica, historicamente ainda jovem, e na espera de recolher frutos maduros, o testemunho de Dom Cipriano mostra que a tradição litúrgica e espiritual da Igreja iluminada pelos critérios teológicos que a geraram e a animaram, é um corpo vivo. Ao longo dos séculos e nos diferentes lugares a liturgia mudou muitas vezes suas formas rituais, segundo as circunstancias históricas e culturais, ao passo que desenvolveu em admirável continuidade a riqueza da fé e a reflexão teológica sobre a mesma.

O precioso tesouro da reforma do Vaticano II espera ainda ser explorado em profundidade e traduzido em pão para alimentar a fé e a vida do povo de Deus. Precisamos de homens e mulheres que, como Dom Vagaggini, animados por grande zelo pelo reino de Deus e iluminados pelo Espírito, dediquem suas energias intelectuais e sua paixão pastoral à uma inteligência sábia e saborosa da liturgia, em vez de procurar fáceis soluções em “novidades”ou na saudade de ritos antigos.

O mundo acadêmico e a Igreja do Brasil durante as últimas décadas têm produzido obras originais significativas e traduzido outras de autores estrangeiros, que são expressão da sua vitalidade e da sua busca para ampliar os horizontes da reflexão e fundamentar sua atividade pastoral.

A recente publicação, em português, de sérios estudos acadêmicos e pastorais de autores que contribuíram em grande medida com o movimento litúrgico que preparou o Concilio ao longo dos anos 30 - 50, é um sinal que a consciência da exigência de um novo aprofundamento do caminho litúrgico está ainda bem presente12. Cada um pode aproveitar desta nova possibilidade e contribuir com a parte que lhe cabe para o seu desenvolvimento.

Dom Emanuele Bargellini , OSB Cam. Mestre em Liturgia no Pontifício Ateneo Santo Anselmo em Roma (PIL). Prior do Mosteiro da Transfiguração, Mogi das Cruzes (SP).

1VAGAGGINI, Cipriano. O sentido teológico da liturgia.
São Paulo: Loyola, 2009. Edição original italiana: Il senso teologico della liturgia. Saggio di liturgia teologica generale, Edizioni Paoline, Roma 1957.
2VAGAGGINI, Cipriano. Perché la nuova facoltá teologica di Milano? Archivio del Monastero di Camaldoli.
3VAGAGGINI, Cipriano. O sentido teológico da liturgia, São Paulo: Loyola, 2009, p. 417.
4Lo spirito della Costituzione sulla liturgia. Rivista Liturgica 51 (1964) 5-49; C. VAGAGGINI - S. MARSILI (ed), Costituzione sulla sacra liturgia. Texto latino e italiano.
Torino: LDC, Leumann, 1964.
5VAGAGGINI, Cipriano. O sentido teológico da liturgia.
São Paulo: Loyola, 2009, p. 439-444.
6VAGAGGINI, Cipriano. O sentido teológico da liturgia. São Paulo: Loyola, 2009: cap. 21, Liturgia e espiritualidade (pp. 555 - 629); cap. 22, O exemplo de uma mística: Santa Gertrude e a espiritualidade litúrgica (pp. 631 -684).
Neste mesmo sentido vai o repetido ensino espiritual do papa Bento XVI nas audiências da quarta-feira, sobre os excelentes exemplos de grandes místicas e místicos da idade media, como Santa Hildegarda de Binguen (1 de setembro 2010); santa Matilda de Hackemburg (29 de setembro 2010); Guilherme de Saint Thierry (2 de dezembro 2009); São Bernardo de Claraval (21 de outubro de 2009). Ele destaca sempre que tais experiências de profunda unidade com o Senhor e consigo mesmos/as, constituem o fruto de toda participação autêntica na liturgia. A mesma consciência da liturgia como lugar privilegiado para o encontro da intimidade transformadora com a palavra de Deus e o mistério pascal de Cristo permeia a exortação Apostólica póssinodal, Verbum Domini, sobre a Palavra do Senhor (30 de setembro 2010), na ampla seção Liturgia lugar privilegiado da palavra de Deus (n. 50-71).
7VAGAGGINI, Cipriano. Il Canone della messa e la riforma litúrgica. Problemi e progetti. Torino: LDC Leumann,1966.
8DI NAPOLI, G. Dall’ipotesi di revisione del Canone Romano all’elaborazione di nuove preghiere eucaristiche: l’apporto determinante di Cipriano Vagaggini. Rivista Liturgica 96 (2009), pág 385-396.
9Veja Introdução ao Lecionário nn. 1-10.
10Spiritualitá sacerdotale e spiritualitá liturgica. Rivista Liturgica 52 (1965), 285-312; p. 285.
11 Liturgia e storia della spiritualitá: un campo di indagine.
CAL (ed), Introduzione agli studi liturgici, Roma 1962, 225-267; p. 226.
12 Além de “O sentido teológico da liturgia” de Vagaggini, ver como exemplo : B. NEUNHEUSER, História da liturgia através das épocas culturais (última edição 1999), Loyola, 2007; O. CASEL, O mistério do culto cristão (1935), Loyola, 2009; J. JUNGMANN; Missarum Sollemnia (1954), Paulinas 2009.

sábado, 21 de julho de 2012

Johann Sebastian Bach - Tocata y fuga en re menor BWV 565

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Liturgia das Horas: 'Laus perene'

LITURGIA DAS HORAS- "Laus perene"

Constituição Apstólica «Laudis canticum»
«O Cântico de louvor, que ressoa eternamente nas moradas celestiais, e que Jesus Cristo, sumo sacerdote, introduziu nesta terra de exílio, foi sempre continuado pela Igreja, ao longo de tantos séculos, constante e fielmente, na maravilhosa variedade das suas formas».

Dados históricos
  • Liturgia das Horas desenvolveu-se, pouco a pouco, até se converter na oração da Igreja local
  • sob a presidência do sacerdote, em tempos e lugares determinados, fazia dela como que um complemento necessário, para que todo o culto divino, centrado e contido no Sacrifício Eucarístico influenciasse e enriquecesse todas as horas da vida dos homens
  • ao longo dos séculos o livro do Ofício Divino, converteu-se em instrumento apropriado para a oração sagrada
  • o Concílio de Trento, por falta de tempo, não fez a reforma do Breviário
  • o Breviario Romano de Pio V de 1568, preocupou-se com a uniformidade das horas canónicas
  • foram introduzidas inovações pelos Pontífices Sisto V, Clemente VIII, Urbano VIII, Clemente XI e outros
  • Pio X, em 1911, publicou o novo Breviário e estabeleceu o uso antigo de recitar, em uma semana, os cento e cinquenta salmos
  • Pio X, fez uma nova disposição do saltério, suprimiu as repetições desnecessárias e adaptou o saltério ferial e o ciclo da liturgia bíblica com o Ofício dos santos
  • Pio X, valorizou e deu importância ao Ofício dominical em relação às festas dos santos
  • Pio XII, também reassumiu trabalho da reforma do Breviário
  • Pio XII, concedeu uma nova versão do Saltério
  • Pio XII, em 1947, mandou uma Comissão especial deestudar o problema do Breviário
  • Pio XII, no Decreto de 23 de Março de 1955, fez a simplificação das rubricas
  • João XXIII, em 1960, continuou a obra do seu predecessor e publicou o Código de Rubricas
João XXIII e Concílio Vaticano II, reforma litúrgica
  • tratou da reforma litúrgica em geral e da oração das Horas em particular
  • O Sinodo dos Bispos de 1967 aprovou os princípios e a estrutura da Liturgia da Horas
  • sete anos de trabalho e preparação do livro da Liturgia das Horas
  • com o contributo dos doutos e peritos em matéria litúrgica, teológica, espiritual e pastoral
Ordenação da Liturgia das Horas
  1. foram ditas em conta as condições em que se encontram os sacerdotes comprometidos no apostolado; o ofício divino como oração do povo de Deus, foi disposto e preparado para todos: clérigos, religiosos e leigos; o Ofício responde às exigências espefícicas de pessoas, de ordens e condições diversas.
  2. a Liturgia das Horas é a santificação de todo o dia. Por isso, a ordem da oração foi renovada, as horas canónicas foram adaptadas as diversas horas do dia; foi suprimida a Hora Prima; às Laudes e às Vésperas têm maior importância e são apresentadas como verdadeira oração da manhã e da tarde; Ofício de leituras foi conservado mas com a possibilidade de adaptá-lo a qualquer hora do dia; a Hora Intermédia foi disposta para escolher uma só, entre as Horas Tércia, Sexta e Noa
  3. a Liturgia das Horas é vista como verdadeira “fonte de piedade e alimento para a pessoal”; foram introduzidos diversos elementos para facilitar a meditação dos salmos, como os títulos, as antífonas, as orações sálmicas e os momentos de silêncio
  4. foi suprimido o ciclo semanal do saltério e distribuído em quatro semanas; foram omitidos salmos e alguns versículos de significado mais duro e difícil; às Laudes foram acrescentados outros cânticos do A. T. e nas Vésperas foram acrescentados cânticos do N. T.
  5. o tesouro da palavra de Deus é mais abundante com uma certa unidade temática em todo o ano acentuando-se os momentos culminantes da história da salvação
  6. as obras dos santos Padres e dos Escritores eclesiásticos, apresentam os melhores escritos de autores cristãs
  7. na Liturgia das Horas foi eliminado o que não corresponde a verdade histórica; as leituras hagiográficas foram revistas
  8. às Laudes ajuntaram-se as preces, para consagrar o dia e invocar a Deus para o começo da jornada laboral; nas Vésperas fazem-se orações de súplica; no fim das preces foi restabelecida a oração dominical, assim por dia permite que seja recitada três vezes: Missa, Laudes e Vésperas
Restauração da Oração da Igreja
  • renovada e restruturada segundo a sua tradição antiquíssima
  • reaviva o sentido da oração “sem interrupção” que Cristo ordenou à sua Igreja
  • oração de toda a família humana, a que se associa a Cristo
  • oração da Igreja é “oração que Cristo, unido ao seu Corpo, eleva ao Pai”
  • a oração dos salmos, que acompanha e proclama a acção de Deus na história da salvação, deve ser compreendida com renovado afecto de todo o povo de Deus
Obrigação da Liturgia das Horas
  • as orações das Horas são propostas a todos os fiéis
  • aqueles que receberam da Igreja o mandato de celebrar a Liturgia das Horas, têm de cumprir todos os dias, no tempo verdadeiro de cada uma das horas, dando importância às Laudes e Vésperas
  • aqueles que receberam a ordem sagrada esão sinal de Cristo sacerdote
  • aqueles que, pela profissão religiosa, foram consagrados ao serviço de Deus e da Igreja de forma especial
Mandato Apostólico
  • estabelecemos, aprovamos e promulgamos, ressoe cada vez mais esplêndido e formoso o louvor divino dos nossos tempos
  • determinamos que este novo livro da Liturgia das Horas possa ser usado após a sua publicação
 
8. 1. Antecedentes bíblicos
8. 2. A Oração ritual judaica no tempo de Jesus
8. 3. A experiência e o ensinamento de Jesus
8. 4. A Oração da comunidade

O Ano Litúrgico nos primeiros quatro séculos

O ANO LITURGICO NOS PRIMEIROS QUATRO SÉCULOS

a) A celebração anual da Páscoa
 
Alguns autores admitem que se pode presumir que a Igreja apostólica conhecia a celebração anual da Páscoa. É uma hipótese porque testemunhos directos em favor de uma celebração ‘ritual’ não existem, ou pelo menos não são evidentes. R. Fuller, um biblista dos Estados Unidos de America, defende que a primeira versão de narrações da paixão e da ressurreição de Jesus tem a sua orgim ‘sitz in leben’ na liturgia comunitária. Se admitimos esta hipótese, o problema é também saber se se trata de liturgia da Páscoa semanal (domingo) ou anual.
Os Atos dos apóstolos apresentam dois textos que falam da páscoa – talvez judaica; o primeiro texto narra a captura e as conseguente libertação de Pedro, isto realiza-se em dois tempos: a) são dias dos azimos quando Pedro é capturado e Herodes espera o fim da páscoa hebraica antes de trazer Pedro diante do povo; enquanto que no segundo se trata das viagens de Paulo.
 
 
Ora, Pedro é arrastado como Jesus dias antes da páscoa ou festas dos ázimos (Lc 22, 1); Pedro é libertado da morte (iminente) como Jesus da morte (consumada); Pedro dorme e é acordado pelos anjos; duas expressões ‘dormir e acordar’ usados para indicar a morte e ressurreição; Pedro é libertado e logo vai dar a notícia aos discípulos.
É significativo que os Sinopticos descrevem a última Ceia como um banquete pascal: Jesus manda os seus discipulos a preparar uma sala para a pascoa (Mc 14,14; Mt 26,18; Lc 22,8). São Paulo à luz da cronologia de joanina, interpreta a morte de Cristo como o verdadeiro sacrificio pascal (1Cor 5,7); ele declara o superamento da festa hebraica da pascoa, porque a nova e verdadeira pascoa è Cristo imolado e ressuscitado “Cristo, nossa pascoa, foi imolado”. Quando se fala de Páscoa refere em geral da Páscoa judaica, mas aqui pela primeira e unica vez o N. T. fala da pascoa crista. Esta unica vez è suficiente para testemunhar que na comunidade crista, vinte anos depois da morte de Jesus, existe uma pacifica e radicada consciencia de possuir a propria pascoa.

b) A Data da celebração
São duas tradições históricas da celebração anual da Páscoa, uma da Ásia Menor e outra de Roma. Os primeiros testemunhos da celebração anual da Páscoa cristã são de meados do II século e procedem da Ásia Menor.
As igrejas da Ásia celebravam a Páscoa 14 de Nisan. Estas igrejas convencidas de que a morte de Cristo tinha substituído a páscoa judaica celebravam a Páscoa jejuando 14 de Nisan e terminavam com a celebração eucarística que tinha lugar no fim da vigilia nortuna entre 14 e 15 de Nisan.
As igrejas unidas à Roma, celebravam a Páscoa no Domingo depois de 14 de Nisan. Na primeira metade do século IV, Eusébio de Cesarea, na sua História eclesistica (5, 23-25) nos fala sobre uma controvérsia do fim do II século a respeito de textos da Páscoa antiga. Cerca do ano 190 acendeu-se a controvérsia de modo o Papa Victor (193-203) ameaçou a excomunhão as comunidades cristãos ‘quatrodecimanos’. Eusébio narra da intervenção pacificadora de vários bispos e, em particular, de Santo Ireneu de Leão, discípulo de São Policarpo de Esmirna. O Papa não deu a excomunhão pelo diálogo de paz e respeito aos cristãos.
Outros autores argumentam que antes do Papa Sotero (166-175) a Páscoa anual não era celebrada na Igreja Romana. No documento história eclesiástica, Ireneu fala daques que ‘observam’, certamente daqueles que observam a Páscoa à sua data tradicional; mas aqueles que não ‘observam’, não observam na data tradicional nem em nenhum outro momento. Isto demonstra que em Roma o ciclo litúrgico semanal era a tentativa de formação litúrgica do calendário e que não era uma festa anual que distinguia um Domingo ao outro Domingo até finais de 166. O dilema não era em relação à morte ou ressurreição de Cristo, mas era se a Páscoa devia ser celebrada no dia da morte ou dia da ressurreição de Cristo. A Páscoa anual celebrada ao Domingo representa um adaptamento da Páscoa semanal introduzida independemente.
Observe-se que ao longo do III século se impõe a data dominical da Páscoa. Por isso, o Decreto de Niceia (325), não fala dos quartodecimanos, mas da diversidade de princípios no calendário da Páscoa nas diversas igrejas. A Igreja ainda hoje celebra a Páscoa no Domingo a seguir o plenilúnio depois do hequinócio da primavera entre 22 de Março a 25 de abril. As divergências existentes até agora sobre a data da Páscoa entre os cristãos se devem a diversas causas, em particular ao facto de que o Patrirca Jeremias de Constatinopla não aceitou a reforma do calendário de Gregório VIII no ano 1582, neste ano se passou do antigo calendário Juliano ao Gregoriano, de modo 4 de Outubro de 1582 tornou-se 15 de outubro de 1982.

c) A estrutura celebrativa

Os mais antigos documentos dos séculos II-III oferecem poucos dados sobre a estruturas celebrativa da Páscoa além da vigília pascal. A Páscoa apresenta-se com um jejum rigoroso, que dura diferentemente entre as igrejas (um ou mais dias), seguida de uma assembleia nocturna de orações e leituras, terminada com a celebração eucarística. No início do III século encontramos indicações de celebração do baptismo na noite da Páscoa. Um quadro ilustrativo das celebraçoes pascais, so vimos a encontrar na Siria no documento Didascalia Apostolorum do século III, e em Jerusalém no Itinerarium Egeriae do fim do IV século.
Quanto ao jejum pascal, a Mishinah (ensinamento) prescrevia o jejum de cada tipo de comida desde a oferta do sacrificio da noite até ao sacrificio do cordeiro pascal. Este jejum foi determinante para o jejum pascal do cristianismo. Pode ser que a norma prática dos quatrodecimanos tivesse o costume de jejuar todo o dia 14 de Nisan até ao canto do galo de 15 de Nisan.
 
 
Em Roma, no século III, o jejum pascal era provalvemente de dois dias antes da Páscoa, mas no capítulo 23 da Tradição Apostólica indica que oo doentes observem um dia de jejum, o sábado. Em Jerusalém, no século IV, segundo o capítulo 27 do Itinerarium Egeriae o grande dia do jejum é o Sábado Santo, único sábado do ano em que se jejua. Diga-se que fins do II século, a Páscoa é uma festa que prossegue em cinquenta dias. De facto, Pentecoste é para os antigos cristãos o inteiro período de cinquenta dias com uma certa acentuação do cinquentésimo dia para o carácter conclusivo do inteiro período. Tertuliano, no (De Baptismo, 19,2) fala como “um só dia de festa “ que “goza da mesma solenidade e leticia” que caracterizam o dia da Páscoa. (De Oratione, 23, 2). De novo, os mais antigos testemunhos da Páscoa vem da Ásia Menor: a Epístola dos Apóstolos, um apócrifo escrito em 150; a homilia de Mileto de Sardi, sobre a Páscoa, um texto poético e académico, escrito 165; homilia sobre a santa Páscoa de um anónimo do II século e outros textos antigos do III e IV séculos.
A Epístola dos Apóstolos, no capítulo 15, refere-se dos Actos dos Apóstolos 12, quando diz:

Depois do meu regresso ao Pai, fazei memoria da minha morte. Quando terá lugar a pascoa, então, a causa do meu nome, um de vós entrará na prisão e estará na tristeza e ânsia, porque vós festejareis a Páscoa, enquanto ele se encontra na prisão e longe de vós; ele chorará porque não celebra a Páscoa convosco. Então eu mandarei o meu poder na figura do anjo Gabriel e as portas da prisão se abrirão. Ele sairá e virá a vás e fará convosco uma noite de vigília, permanecendo convosco até ao canto do galo. Contudo quando tereis feito memoria que se faz de mim e o agapé, ele será de novo deitar na prisão no testemunho, para que sairá dali e anunciará aquilo que vos transmiti. Nós lhe dissemos: Senhor,, é de novo necessário que nós tomemos bebamos o cálice? Ele disse: Sim. É necessário até ao dia em que eu estarei con aqueles que foram mortos por minha causa.
Aqui também a Páscoa é a celebração da morte de Cristo (até ao canto do galo) que culmina com a celebração eucarística.
Na Siria, na primeira metade do III século, a Didascalia (5,19) apresenta uma descrição mais detalhada da vigília pascal. Depois de descrever o jejum completo, sexta-feira e sábado, em sinal de luto pela paixão e morte do Senhor, diz:
… para toda a noite, juntos permanecei reunido, ficai em vigília suplicando e rezando, lendo os profetas, o evangelho e os salmos, com temor e tremor e com assidua súplica até a hora terceira da noite, isto é, ao canto do galo, passado o sábado e então livrai o vosso jejum; portanto oferecei os vossos sacrificios e então comei e alegrai-vos, porque Cristo ressuscitado é o penhor da nossa ressurreição.

Na primeira parte do III século, Tertuliano num contexto não bem claro da obra De baptismo (19,1) e Hipólito no comentário In Danielem (1,16), apresentam a Páscoa como o dia apropriado para o baptismo e assim também é interpretada a vigília baptismal e descrita na Tradição Apostólica (21). Esta práxis torna-se comum no decurso do IV século.

d) O fundamento teológica da Páscoa

São vários os testemunhos de catequese pascal da igreja antiga. As homilias pascais do II século mostram que a Páscoa é em vista a celebração da morte redentora de Cristo um aspecto teológico cuja característica principal é a globalidade, enquanto o mistério pascal de Cristo é considerado momento culminante que recolhe em si os grandes momentos da história salvífica.
O argumento central da homilia sobre a Páscoa é a Paixão de Cristo, que é considerado sob diversas prospectivas: Mileto mete em relevo o valor salvifico da Páscoa; ele demonstra que a obra divina da salvação é vantagem da humanidade pecadora; por fim, explica que o povo de Israel, o qual foi confiado o rito prefigurante a Páscoa cristã, foi castigado por Deus por causa da sua ingratidão e o antigo simbolismo não serve, porque a verdadeira Páscoa foi realizada perfeitamente por Jesus Cristo, vitorioso sobre o pecado e a morte. O conteúdo da celebração pascal é a morte vitoriosa de Cristo.
Quem é o meu contraditor? Sou eu – disse – Cristo. Sou eu que destrui a morte, que venci o inimigo, que calquei o Ade, que amarrei o forte, que raptei o homem para os céus. Sou eu – disse – Cristo. Portanto, vinde, vós todos geração humana, vós mergulhados no pecado. Recebei a remissão dos pecados. Sou eu, de facto, a vossa remissão; sou eu a Páscoa de salvação; eu o Cordeiro imolado para vós (102-103).

A homilia sobre a Santa Páscoa de um anónimo tem um semelhante conteúdo teológico. O texto aprece com um hino de Cristo Luz-vida; fala da Páscoa judaica e da Páscoa cristã. Por fim, exalta Cristo; e a Páscoa apresenta como a festa de todo o mundo que Cristo pagou com o seu sangue.
Nestes textos homiléticos se realiza uma dilatação da ideia pascal ligada à imolação do cordeiro (1Cor 5,7), de maneira que a expressão ‘mistério da pascoa’ que aparece pela primeira vez nestes autores, alia-se ao inteiro plano salvífico de Deus e coincide com o ‘mistério de Cristo do qual Paulo fala (Col 4,3; Ef 3,4). A celebração pascal comemora todo o mistério de Cristo culminante no evento salvifico da cruz.
As ideias teológicas fundamentais da celebração da Páscoa são: Páscoa-paixão, Páscoa-passagem; comemoração da Paixão vitoriosa de Cristo; da Páscoa-recapitalação; Páscoa-parusia (escatologia).

a) da “Páscoa - paixão” à “Páscoa - passagem” – na tradição da Ásia Menor (II-III séculos) e de Alexandria (III século) o conteúdo central da Páscoa é a paixão e a morte do Senhor. A concepção da Páscoa como paixão é fundada na etimologia popular que colocava em relação a palavra pascha com o grego paschein, pathos, e com o latim pati, passio.
Para esta tradição, a Páscoa é a celebração total da nossa redenção, comemoração da paixão vitoriosa de Cristo. Os textos falam da obra da salvação, mas metem o acento sobre a paixão de Cristo. A celebração tem como tipologia a imolação do cordeiro pascal (1 Cor 5, 7). A ressurreição é vista como uma espécie de corolário natural da morte vitoriosa. O rito central da páscoa é a eucaristia que anuncia “a morte do Senhor até que ele venha” (1 Cor 11, 26). Aqui constata-se que a teologia da páscoa antiga é muito mais ampla do que se pode vir a “páscoa semanal”. A páscoa é a festa anual da redenção de Cristo, enquanto que o domingo nasce com o tema da ressurreição de Cristo.
Mas no início do III século, Clemente de Alexandria e Origines, embora falem da páscoa como comemoração da paixão, afirmam que a expressão não vem de paschein mas do ebraico phas, isto é passagem (em grego, diabasis). «Porque nesta festa o povo saiu do Egipto, justamente essa é chamada phas, isto é, passagem» (Origenes, Fragmento da Obra sobre a Páscoa, n 37). Origenes também espiritualiza e universaliza a páscoa, tal que, para ele, a igreja e cada fiel celebra incessantemente nos sacramentos (no baptismo e na eucaristia), (Contra Celso, 8, 22). Clemente de Alexandria apoia-se sobre as consequências morais: a páscoa «é a passagem de cada paixão e de cada coisa sensível (Stremati, 2, 22, 51, 2).
São Jerónimo, como antes tinha falado Origenes e outros escritores da antiguidade, fala da páscoa como passagem (transitus), mas coloca em realce o facto que, segundo o Êxodo, esta passagem é aquela do Senhor. Santo Agostinho aceita esta correcção de sentido e faz uma síntese, unindo a concepção da páscoa – paixão e páscoa passagem:
... «através da paixão, o Senhor passou da morte à vida, abrindo a vida a nós que acreditamos na sua ressurreição, para passar também da morte à vida» (Exposição sobre o salmo 120, 6). Para Santo Agostinho a páscoa se realiza na eucaristia quotidiana. Mas isto não compromete o significado especial da solenidade anual da páscoa, que tem a sua eficácia peculiar:
não devemos, de facto, considerar estes dias (Páscoa) assim fora do ordinário para esquecer a memória da Paixão e da Ressurreição que fazemos quando nos alimentamos cada dia do seu corpo e do seu sangue. Contudo, a presente solenidade tem o poder de reinvocar à mente com mais clareza, para suscitar maior fervor e de alegrar mais intensamente o facto que, voltando a distância de um ano, nos representa visivelmente a lembrança do evento (Sermão Wilmart, 9,2).
Pelo contrário, Santo Ambrósio, considera que o sacramento pascal por excelência ainda mais que a eucaristia é o baptismo: passagem do pecado à vida, da culpa a graça, da mancha à santidade (De sacramentis, 1, 4, 12). Estas evoluções tendem orientar-se para o momento tipológico mais importante da imolação do cordeiro (Ex 12) à passagem do mar vermelho (Ex 13-14). Por isso, o baptismo é visto como o rito do sacramento próprio da páscoa.

 
b) a Páscoa – recapitulação – na páscoa litúrgica de Isreal a memória do Êxodo se tinha estendido até à criação: a primeira noite em que JHWH se manifestou ao mundo para criar. Análogo processo se verifica para a páscoa da Igreja. A concepção de páscoa como recapitulação, retoma uma ideia de São Paulo na Carta aos Efésios, ali onde fala do desígnio de Deus de «recapitular em Cristo todas as coisas, aquelas como céu como aquelas da terra» (Ef. 1, 10). A ideia é começar desde o início e levantar ou erguer. Toda a Epístola desenvolve a ideia de Cristo que regenera e une debaixo da sua autoridade, para reconduzira Deus, o mundo criado, que o pecado tinha corrompido e dividido: o mundo dos homens, em que judeus e pagãos são reunidos numa única salvação, e também o mundo dos anjos.
O conceito de recapitulação procura mostrar a unidade do desígnio salvífico de Deus, criação e redenção numa única economia divina. É tema frequente nas catequeses pascais dos padres, e coloca em realce o mistério da ressurreição. Gaudêncio de Brescia (410 diz: o Filho de Deus, por meio do qual todas as coisas foram feitas, eleva com a própria ressurreição o mundo prostrado no mesmo dia e na mesma estação em que ele mesmo no princípio o criou de nada. Assim tudo é ressuscitado em Cristo» (Tratado sobre o Êxodo, 1, 3). São Paulo fala do baptismo como uma nova criação (2 Cor 5, 17); Gal 6, 15).

 
c) a Páscoa – parusia (escatologia) – a espera escatológica constituía um elemento importante na páscoa judaica no tempo de Jesus, até o consolidar-se de uma tradição que ligava cronologcamente a aparição do Messias prometido na festa da páscoa.

terça-feira, 10 de julho de 2012

A caixa aberta: aproximação ao Concílio Vaticano II

A caixa aberta: aproximação ao Concílio Vaticano II

Entrevista com Alfredo Bronzato

 Exiba 292036_152242184857389_100002148265989_288150_2729729_n.jpg na apresentação de slides
Alfredo Bronzato é bacharel e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Entre os dias 29 de maio e 1º de junho passado, participou do XIII Simpósio Nacional da Associação Brasileira de História das Religiões, realizado na Universidade Federal do Maranhão (UFMA); e no dia 28 de julho corrente irá ministrar a palestra “Panorama Histórico do Concílio de Trento” por ocasião do II Seminário de Liturgia do Vicariato Episcopal Oeste, cujo mote é “Celebrando os 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II”.

Prof. Alfredo, como você avalia do ponto de vista histórico o Concílio Vaticano II?

 Quando se trata de abordar um concílio do ponto de vista histórico, deve-se, antes do mais, ter em mente que ele é simultaneamente um ponto de chegada e um ponto de partida: recolhe a experiência eclesial de um certo período e, à sua luz, confirma ou redireciona a vivência cristã – não modificando aquilo que é o núcleo precioso e inegociável da fé que guarda e prega, fé que recebeu dos santos apóstolos, mas fazendo-a inteligível e pertinente aos tempos que se põem. Foi assim em toda a milenar história do movimento cristão, de Nicéia ao Vaticano II. Um concílio deve, portanto, ser entendido não apenas em função dos movimentos intestinos da estrutura eclesial em um dado momento, mas também em relação com o que acontecia extra muros quando de sua convocação, realização e aplicação.

Para usar uma frase de impacto, o Vaticano II foi uma resposta positiva do catolicismo à modernidade. Quando uso este adjetivo para qualificar a relação entre o catolicismo e a modernidade não quero atribuir a ele um valor moral, afirmando que o Vaticano II foi uma resposta boa ao mundo moderno, mas quero recuperar um outro significado do termo positivo: o Concílio Vaticano II foi uma resposta construtiva, baseada em fatos dados, a um mundo que havia experimentado talvez mais mudanças nos últimos cento e cinquenta anos do que nos quinhentos ou mil anos precedentes. Deste ponto de vista, o Concílio Vaticano II foi inverso ao Concílio Vaticano I, que, em linhas gerais, recusou-se ao diálogo com a modernidade e foi marcado por tendências centrípetas, por uma tentativa de fechar a Igreja – e Igreja compreendida quase que só em termos de hierarquia sacerdotal – em torno de si mesma. Por outro lado, sob este mesmo prisma, pode-se interpetar o Vaticano II como uma continuação possível do Concílio de Trento, que trouxe para a vida da Igreja como elementos constitutivos fenômenos que são tipicamente modernos, como a valorização geral da disciplina e do imperativo missionário, não mais restritos a círculos monásticos, de pessoas tidas como especiais, como essencialmente distintas das outras.

Creio que a grande questão do Concílio Vaticano II – e que ainda deve ser a nossa – é como se pode ser católico não apenas depois que certa filosofia proclamou a morte de Deus, mas como se pode ser cristão depois que as atrocidades do imperialismo, as duas grandes guerras, os campos de concentração, as bombas atômicas e certos arranjos econômicos internacionais que condenam milhares à vergonha e à fome, proclamaram a morte do homem. Reafirmar com ainda mais veemência que a Igreja era uma sociedade perfeita, que não precisava do mundo para nada, insistir apenas nos aspectos mais individualistas da fé cristã, nas devoções, em certa escatologia, seria pecar por omissão, e, portanto, trair a missão que têm os cristãos de ser sal da terra e luz do mundo.

A velha instituição havia aparentemente resistido bem ao choque da Segunda Grande Guerra Mundial: os seminários eram numerosos, ainda que fosse preocupante a queda das vocações; os bispos continuavam em seus lugares, informados e eficientes; a frequência aos sacramentos declinava tão lentamente que se imaginava ser esta uma tendência passageira... Sustentava-se, portanto, o mesmo tipo de ilusão de vitalidade que os encantados tradicionalistas de hoje sustentam quando apontam um certo tradicionalismo das igrejas locais da África e da Ásia como contraponto ao desânimo dos católicos de paragens que nos últimos séculos foram marcadas por uma grande presença institucional da Igreja; como se elas não fossem passar pelos mesmos problemas que o Velho Mundo católico passou e passa. Como eu escrevi, a Igreja de modelo tridentino havia resistido bem apenas aparentemente. Houve resistências heróicas ao totalitarismo nazista, gestos corajosos que não podem ser esquecidos, mas muitos eram os que, com certa razão, questionaram publicamente a atitude de certos membros do episcopado diante da Ocupação hitlerista. Na França, por exemplo, apenas seis bispos opuseram-se publicamente à legislação contra os judeus e à política de colaboração com a Alemanha de Hitler – colaboração na qual se enganjaram, aliás, importantes setores da tradicional direita católica francesa. O cardeal-arcebispo de Paris, por outro lado, foi proibido por Charles de Gaulle de participar da cerimônia comemorativa da vitória, realizada na Catedral de Notre-Dame, por ter dado apoio público ao governo do Marechal Pétain...

Houve uma tendência a esquecer esta fissura entre conformismo e resistência (que também se verificou nas relações entre a Igreja Católica e as ditaduras civil-militares latino-americanas), mas um difuso mal-estar se elevou dela. O mesmo cardeal-arcebispo de Paris foi um dos que reconheceu que havia qualquer coisa de novo que deveria ser levado em consideração pela Igreja: no seu livro Avanço ou declínio da Igreja ele constatou a crise das vocações, o avanço rápido da indiferença religiosa e o surgimento de uma cultura operária cuja gramática as autoridades católicas desconheciam. Muitos padres e bispos reconheceram as regiões sob seus cuidados nesta análise, e este pequeno volume foi traduzido quase que imediatamente para as principais línguas do planeta. Na França criou-se uma importante Missão Interior: destacaram-se padres das paróquias para que mergulhassem inteiramente no mundo operário, vivendo como leigos, morando nas periferias, trabalhando nas fábricas, tendo como único objetivo serem reconhecidos pelo que eram por seus companheiros de trabalho, dando testemunho desta forma da Mensagem do qual se faziam portadores. Muitas outras iniciativas semelhantes foram experimentadas mundo afora, principalmente na Itália, na Inglaterra e na América Latina. Tratou-se de uma experiência límitrofe, que acabou gerando abusos. Roma logo se conscientizou dos riscos teológicos e políticos envolvidos e fez com que se interrompesse o empreendimento dos padres-operários em 1954; quase dois terços dos cĺérigos nele envolvidos pedem após seu término sua volta ao estado leigo. Encontraremos um esquema análogo na época do Papa João Paulo II, quando se colocou com maior força o problema das teologias ditas da libertação, mas o que quero destacar é que os franceses, com alguma falta de tato, assinalaram que havia uma questão urgente e ainda sem solução: a da relação entre a Igreja enquanto instituição e o novo mundo que surgia diante de seus olhos e longe de seu abraço.

É nesse momento de crise – e, como nos ensina Teilhard de Chardin, a crise não é necessariamente uma ruptura, mas uma situação que nos obriga a (re) pensar – que encontramos o homem certo no lugar certo.
Quando Angelo Roncalli sucedeu o Papa Pio XII – que foi uma figura cada vez mais isolada, que com a idade foi se aferrando mais e mais à compreensão de que a Igreja deveria permanecer exatamente onde estava – pensava-se que ele seria um moderado e aceitável Papa de transição. O gorducho e bonachão Patriarca de Veneza – que não era um teólogo ou um burocrata, mas historiador (estudioso da vida de Carlos Borromeu), diplomata e pastor – entretanto, não temia a mudança e recusava vivamente a visão daqueles que viam apenas ruína e calamidade ao seu redor. Erguendo a bandeira da esperança contra o – até certo ponto muito justificado – pessimismo de alguns líderes eclesiásticos, o Papa João XXIII valorizava a sensibilidade democrática e a liberdade de consciência que são características do mundo contemporâneo, e acreditava na capacidade do ser humano mudar o mundo para melhor. Sabia também que, às vezes, é necessário se mudar muito para se permanecer o mesmo, e que se a Igreja Católica quisesse ser fiel à sua missão era necessário participar das alegrias e angústias dos homens e mulheres dos novos tempos, sendo, entre eles, sinal de esperança e fermento de transformação. Contra forte e persistente oposição por parte da Cúria Romana, convocou um concílio geral para reavaliar o papel da Igreja no mundo, rompendo com a visão triunfalista (e míope) que, reelaborando o argumento agostiniano, tanto havia marcado o catolicismo no século anterior com a afirmação de que a humanidade se separava em dois mundos: a Cidade de Deus, encastelada no Vaticano, e a Cidade de Satanás, o assim chamado “mundo moderno”, com seus apóstatas, hereges e cismáticos.

Diversos setores eclesiais reagiram com ceticismo com relação à possibilidade e à necessidade de um novo concílio ecumênico; perguntavam-se: por que convocar um se o Papa havia sido nomeado infalível menos de cem anos antes? Da mesma forma reagiram os governos seculares e outros setores sociais. Antes da realização do Concílio adiantou-se a Cúria na preparação dos documentos, muitos dos quais foram rejeitados ou inteiramente reformulados nas sessões conciliares pelo episcopado reunido. Os bispos do mundo inteiro foram consultados acerca de quais assuntos deveriam ser abordados nesta imprevista reunião, e, se grande parte deles se calou (não se sabia, afinal, se era o caso de algum teste de ortodoxia e fidelidade), houve posicionamentos interessantíssimos – como, por exemplo, o de D. Afonso Ungarelli, MSC, responsável pela Prelazia de Pinheiro, no norte do Maranhão. D. Ungarelli, que era químico formado, um homem prático, percebeu com acuidade a importância do momento histórico que vivia e fez recomendações a Roma sobre a necessidade de se traduzir o breviário e os ritos dos sacramentos para que a Igreja se fizesse entender mesmo entre os caboclos maranhenses...

Quando, em 11 de outubro de 1962, os 2.500 padres conciliares entraram em procissão no Vaticano o espetáculo foi impressionante para os observadores externos e internos: nunca se havia assistido semelhante reunião, a uma assembléia de mitrados de tão diversas cores e idiomas. Não se tratou de um concílio europeu, como boa parte dos concílios do segundo milênio do cristianismo, mas de um concílio ecumênico no sentido forte e primeiro da expressão, como os grandes concílios da Antiguidade Tardia. 33% dos participantes provinham da Europa Ocidental, incluídos aí os membros da Cúria Romana; 13% eram oriundos dos Estados Unidos e do Canadá; 22% da América Latina; 10% da Ásia; 10% da África Negra; 3,5% do mundo árabe; 2,5% da Oceania. Por razões políticas, as lideranças católicas cujos rebanhos estavam em países comunistas foram subrepresentadas: apenas 14 dos 27 bispos iuguslavos; 20 dos 65 poloneses; 4 dos 8 alemães orientais; 2 dos 16 húngaros; 3 dos 15 tchecos; e nenhum bispo russo, romeno, chinês ou norte-vietimanita. Diante deste grupo heterogêneo, João XXIII manifestou-se de maneira claríssima: afastou-se dos profetas da desventura, fez o elogio da misericórdia contra a pregação da severidade, eximiu-se de proferir condenações e anátemas, expressou seu desejo pela unidade ecumênica, com os fiéis não-cristãos e com todo o gênero humano, pediu que o Concílio não fosse uma reunião intestina, mas que correspondesse às necessidades dos diversos povos.

Pode-se fazê-lo remontar a antes disto, mas, de uma forma geral, este é o começo da história do Concílio Vaticano II...

 

    O Papa João XXIII participa da celebração da Divina Liturgia de São João Crisóstomo durante o Concílio Vaticano II. (Imagem copiada de: http://tinyurl.com/d4rr78b).



O Concilio Vaticano II promoveu muitas mudanças na Igreja e, com elas, novos desafios surgiram. Quais mudanças e desafios o senhor destacaria?

 Comecemos pelas mudanças de cúpula, literalmente. Com o Concílio Vaticano II, o centralismo romano, bem estabelecido fazia séculos, teve de ceder diante dos episcopados – o que, aliás, está plenamente de acordo com as mais antigas tradições da Igreja. Citarei um único exemplo, mas um exemplo muito significativo. Depois do período das Cruzadas algumas Igrejas Cristãs Orientais entraram em plena comunhão com a Igreja Católica por várias razões. Menosprezadas por seus homólogos (e vizinhos) Ortodoxos como uniatas, elas também tiveram de enfrentar a ignorância e a desconfiança da parte da Cúria Romana, além de tentativas eventuais de romanização por parte de prelados de origem ocidental, normalmente apoiados por autoridades coloniais. Durante as sessões do Vaticano II o Patriarca Greco-Melquita Máximo IV Sayegh defendeu estas tradições orientais em alto tom, lembrando que catolicismo e latinismo não são sinônimos; recusou-se mesmo a falar em latim, alegando que não havia sentido nisto, pois as línguas litúrgica e pastoral de seu uso corrente eram o grego e o árabe. O Concílio reconheceu os cristãos orientais em comunhão com Roma não apenas como ritos, variações eclesiais exóticas que supostamente existiam apenas por liberalidade do Bispo de Roma, mas como igrejas verdadeiras, plenas, com uma teologia, uma espiritualidade, um governo eclesiástico e um direito canônico próprios.

Mais ainda: com o Vaticano II, o catolicismo enquanto instituição propôs-se a descer de sua cidadela e dialogar em pé de igualdade não apenas com os filhos diversos – como os católicos orientais – suas irmãs mais próximas – a Ortodoxia Grega e as confissões chamadas pré-calcedonianas – e irmãos mais velhos – os judeus – mas também com todos aqueles que poderiam ser considerados, poucos anos antes da convocação do Concílio, seus inimigos naturais – muçulmanos, protestantes, humanistas seculares, comunistas. Com o Concílio Vaticano a Igreja Católica de fato experimentou uma mudança significativa em seu perfil histórico, animada pelo duplo e convergente movimento da refontização (voltar às fontes dos primeiros dias do cristianismo) e do aggiornamento (“atualização”, ou seja, ler as fontes da fé à luz do tempo presente).
Quando se fala com raiva ou com saudosismo da Igreja Católica como a Igreja das cruzadas, das inquisições, da missionação violenta, da destruição das culturas não-européias, da rejeição ao pensamento científico, da pregação monomaníaca do inferno e da demonização do corpo, não se está falando – ou não se deveria estar falando – da Igreja Católica pós-Vaticano II, que define sua missão como a de transmitir a fé aos novos tempos ajudando a construir nestes o Reino de Deus. Trata-se de uma orientação que não é acessória para quem nas últimas décadas e hoje quer se chamar de católico. À luz desta consideração, desqualificar o Vaticano II como sendo apenas um concílio pastoral, tratando-o como se fosse uma espécie de concílio optativo, é prova de desconhecimento e má-fé: toda mudança pastoral pressupõe e causa uma mudança teológica e um dado contexto histórico; todo novo contexto histórico causará mudanças teológicas e pastorais; toda mudança teológica pressupõe e causa uma mudança pastoral em um dado contexto histórico; e mudanças deste tipo pontuam a história da Igreja e dão-lhe vitalidade. De fato, de um ponto de vista agnóstico (que deve ser a saudável perspectiva da historiografia acadêmica), ou seja, que não considere a Revelação cristã e, fiada nesta, creia que há a ação do Espírito Santo sobre a Igreja, é esta capacidade adaptativa do catolicismo – manifesta no Concílio Vaticano II – o que constitui a sua pertinência a tantas pessoas e coletividades por um período tão longo. Não se trata de coisa banal, a ser ignorada.

Por outro lado, eu não saberia responder se a Igreja Católica, hoje, realmente mudou no sentido que o Papa João XXIII desejava que ela mudasse quando convocou o Concílio Vaticano II. Os debates conciliares, a morte e sucessão de João XXIII, a busca pelos consensos necessários: tudo isto fez modificar o seu rumo original, como sempre acontece em eventos deste tipo, eventos em que há debate e em que se manifesta a divergência. Há ainda de se considerar as dificuldades de aplicação e a penetração variável em diferentes contextos eclesiais das decisões desta Assembléia, as posições refratárias em escalas diversas, as distorções das propostas conciliares, as recusas, as novas mudanças históricas. Além disso, o Concílio levantou muitas expectativas, mas deixou de lado muitos problemas que ainda esperam por solução. Qual deve ser a atitude diante dos que não estão dispostos a dialogar? Qual deve ser o nível de participação da Igreja enquanto instituição no processo político democrático? Qual o papel da liberdade de consciência e de expressão diante do posicionamento oficial ou oficioso da hierarquia eclesiástica em questões que não são de fé? Evidentemente, isso não desqualifica o Vaticano II, mas, ao contrário, ressalta a responsabilidade que os católicos têm hoje em relação ao patrimônio religioso que herdaram daqueles que os precederam na fé. A fé cristã, de alicerces bem estabelecidos, não é algo fechado, mas algo que se tece na prática e reflexão cotidianas dos tempos mutáveis. O passado é um cemitério de verdades abandondas (algumas justamente) e devemos hoje lidar com questões que não haveria como serem postas ou respondidas pelos santos apóstolos ou por nenhum dos concílios do passado – pessoas e eventos que devem lembrar-nos de nossas responsabilidades enquanto católicos para com a formação do rosto da Igreja em nossos dias.

Para encerrar, gostaria de citar um trecho do livro Tu és Pedro (Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001), interessante e acessível obra de síntese de história da Igreja, cujo autor, Georges Suffert, recentemente falecido, foi um personagem notável: jornalista e escritor francês, participou da Juventude Estudantil Católica e comprometeu-se publicamente com a denúncia das atrocidades cometidas pelos militares franceses quando das guerras de independência do Marrocos e da Argélia. Escrevendo a respeito do contexto histórico do Concílio Vaticano, Suffert lucidamente destacou que: “(...) Talvez tenhamos entrado, com a eleição de João XXIII, em um dos períodos mais surpreendentes da história da Igreja. Enfraquecida, conservadora, muitas vezes considerada moribunda por alguma das boas cabeças do século XIX, dividida contra si mesma, [com o Concílio Vaticano II] ela inicia uma espécie de ressurreição cuja importância e alcance muitos cristãos não avaliam. (…) Não que esse concílio tenha cumprido tudo o que prometeu; poder-se-ia até afirmar o contrário. Mas o abalo provocado dentro da imensa máquina eclesiástica modificou as regras do jogo. A Igreja não foi mais a mesma. (…) era preciso acreditar, com uma ingenuidade ou uma inteligência de santo, que o mundo esperava uma linguagem ao mesmo tempo muito antiga e totalmente nova. Ninguém pode prever aonde nos levará essa mutação da Igreja Católica. O impulso cairá tão depressa quanto surgiu? O movimento ecumênico vai se apagar ou, ao contrário, levar tudo o que estiver na frente? Nossos filhos assistirão à reunificação do cristianismo? E a humanidade do novo milênio constatará que sua vontade de confiança no homem não tem muito sentido se não se enraizar no antiquíssimo profetismo judaico-cristão?” (pp. 452-453.463).
Isto posto, prossegue o autor de Tu és Pedro: (…) O futuro permanece totalmente imprevisível. Mas o presente já permite entrever novos horizontes. Caminhamos todos juntos de um mistério a outro.” (p. 464).

 Para saber mais:

FAGGIOLI, Massimo. Vatican II: the battle for meaning. Mahwah, New Jersey: Paulist Press, 2012. Resenha de: CALDEIRA, Rodrigo Coppe. “Vaticano II: a batalha pelo significado. Uma análise de Rodrigo Coppe Caldeira”. IHU-Online, 7 de julho de 2012. (Disponível online em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511178-vaticano-ii-a-batalha-pelo-significado-uma-analise-de-rodrigo-coppe-caldeira).

HORIZONTE – Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-MG. Belo Horizonte, v. 9, n. 24 (especial), dezembro de 2011 – Dossiê: “Concílio Vaticano II: 50 anos”. (Disponível online em http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/issue/view/152).

IGREJA GRECO-MELQUITA CATÓLICA. A Igreja Greco-Melquita no Concílio. Discursos e notas do Patriarca Máximo IV e dos prelados de sua Igreja no Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Loyola / Eparquia Melquita do Brasil, 1992. (Parcialmente disponível em: http://tinyurl.com/c776zon).

PAPA JOÃO XIII. “O discurso da lua”. Cidade do Vaticano, 11 de outubro de 1962. (Tradução de Pablo Lima e Tiago Freitas. Disponível em: http://www.patiodosgentios.com/espiritualidade/o-discurso-da-lua/).

PAPA JOÃO XXIII. “Discurso de Sua Santidade Papa João XXIII na Abertura Solene do SS. Concílio”. Cidade do Vaticano, 11 de outubro de 1962. (Disponível em tradução para o português em: http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council_po.html).
SUFFERT, Georges. Tu és Pedro: santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos 20 primeiros séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Tradução de Adalgisa Campos da Silva). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. (Parcialmente disponível