sábado, 14 de abril de 2012

O Espírito Santo e a Palavra de Deus

O Espírito Santo e a Palavra de Deus
Por: Vanderson de Sousa Silva
Mestrando em Teologia Sistemático-Pastoral (Teologia Litúrgica) na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), o projeto de pesquisa gravita em torno da teologia das Orações Eucarísticas, tendo como orientador o Prof. Dr. Pe. Luiz Fernando Ribeiro Santana e apoio do CNPQ. Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Graduado em Filosofia (IFITEPS), Pedagogia (UNIRIO) e graduando-se em Ciências Sociais (UFF). Contato: semvanderson@hotmail.com.
1. INTRODUÇÃO


Benfeitor supremo, em todo o momento, habitando em nós sois o nosso alento.[1]


Nosso trabalho intenta perquirir a pneumatologia em sua relação com a Palavra de Deus, como um binômio indissociável. Para tanto, utilizar-se-á da obra de Achille M. Triacca e principalmente da Verbum Domini[2], no que tocam ao tema. Contudo, não se olvide que nossa pesquisa não pretende esgotar o tema, mas estabelecer relações entre a Exortação Pós-Sinodal Verbum Domini e a Pneumatologia no verbete de Triacca.

2. Aspectos da pneumatologia e sua relação com a Palavra em Triacca

Triacca no verbete “Espírito Santo” do Dicionário de Liturgia inicia com uma definição acerca da relação entre a liturgia e pneumatologia, assim, assevera que a liturgia é essencialmente epifania do Espírito de Cristo glorificado. Para o autor a liturgia é o locus privilegiado de comunicação do Espírito Santo que realiza a presença de Cristo e que, por sua vez, comunica-O à assembleia reunida.

Para Triacca, há uma relação íntima entre o Espírito Santo e a Liturgia, poder-se-ia, mesmo afirmar, uma relação indissociável entre a Palavra de Deus e o Espírito Santo, principalmente no opus litúrgico. De fato, não é possível uma compreensão autêntica da Revelação cristã fora da ação do Espírito Paráclito. Isto se deve ao fato de a comunicação que Deus faz de Si mesmo implicar sempre a relação entre o Filho e o Espírito Santo, a quem, Santo Ireneu de Lião realmente chama “as duas mãos do Pai”.

Triacca afirma que a Liturgia é epifania do Espírito Santo:


"Se a celebração litúrgica não for sinal do Espírito, ela nada será. Com efeito, a verdadeira essência da ação litúrgica consiste em ser-epifania-do-Espírito Santo. Ora, o Espírito, por meio da Escritura, foi iconógrafo, isto é, operou no hagiógrafo a revelação do ícone do Pai, que é Jesus Cristo (cf. 2Cor 4,4; Cl 1,15). Em Maria, ele foi iconoplasta, ou seja, é plasmador do próprio ícone (do Verbo).

Na ação litúrgica, ele simultaneamente iconógrafo, iconoplasta e iconóforo, isto é, portador do ícone do Pai presencializado e vivificado[3].

Portanto, o Espírito Santo -plasma, porta e escreve o ícone da Trindade no orante da prece litúrgica. Segundo, Triacca, por meio da Sagrada Escritura o Espírito Santo foi iconógrafo[4], ou, seja o mesmo Espírito, escreveu/pintou a imagem de Cristo nos escritores inspirados. Por ser inspirada pelo Espírito Santo que a Verbum Domini 16 afirma que “sem a ação eficaz do ‘Espírito da Verdade’ (Jo14,16), não se podem compreender as palavras do Senhor”, pois Ele é o que operou no hagiógrafo.[5]
Desta relação entre o Espírito Santo e a Escritura, poder-se-ia vislumbra na própria História da Salvação consignado por escrito pelos hagiógrafos, particularmente, na vida de Jesus, este, é concebido no seio de Maria por obra do Espírito Santo (Mt 1,18; L c 1,35); ao iniciar a sua missão pública nas margens do Jordão, vê-O descer sobre Si em forma de pomba (Mt 3,16); neste mesmo Espírito, Jesus age, fala e exulta (L c 10, 21); é no Espírito que Se oferece a Si mesmo (Hb 9,14).
Quando está para terminar a sua missão – segundo narra o evangelista São João –, o próprio Jesus relaciona claramente o dom da sua vida com o envio do Espírito aos seus (Jo 16,7). O ressuscitado derrama o Espírito Santo (Jo 20, 22), tornando os discípulos participantes da sua própria missão (Jo 20, 21).
O Espírito Santo ensinará aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo disse (Jo 14,26), porque será Ele, o Espírito de Verdade (Jo 15, 26), a guiar os discípulos para a Verdade (Jo 16,13). Por fim, como se lê nos Atos dos Apóstolos, o Espírito desce sobre os Doze reunidos em oração com Maria no dia de Pentecostes (At 2,1-4) e anima-os na missão de anunciar a Boa Nova a todos os povos.

Na teologia patrística era comum aos Padres afirmarem a necessidade do auxílio pneumático para compreender a própria Escritura, visto que a mesma, é inspirada pelo Pneuma, assim, é abundante as assertivas que a Verbum Domini no n. 16 apresenta dos Padres da Igreja, tais como Jerônimo, Gregório Magno, que sublinha, de modo sugestivo que o mesmo Espírito forma e interpreta a Escritura – “Ele mesmo criou as palavras dos Testamentos Sagrados, Ele mesmo as desvendou” e por fim, Ricardo de São Vítor, que se utiliza da imagem dos “olhos de pombas” para iluminar, instruir e compreender o texto Sagrado.

A relação entre a Escritura e o Espírito Santo é uma relação indissociável, para tanto, apresentar-se-á o que o Ordo Lectionum Missae afirma sobre esta relação:

· A OLM n. 9: “Para que a Palavra de Deus realmente produza nos corações aquilo que se escuta com os ouvidos, requer-se a ação do Espírito anto, por cuja inspiração e ajuda a Palavra de Deus se converte no fundamento da ação litúrgica e em norma e ajuda de toda a vida. Assim, pois, a atuação do Espírito Santo não só precede, acompanha e segue toda a ação litúrgica mas também
sugere ao coração de cada um tudo aquilo que, na proclamação da Palavra de Deus, foi dito para toda a comunidade dos fiéis [...]”.[6]

Para Sorci [7] é na liturgia a Escritura volta a ser Palavra viva, pois se “recria o contexto original no qual a palavra foi pronunciada e pelo qual foi fixado, por esta razão o escrito volta a ser Palavra viva”. Assim, a presença da Palavra e de Cristo na Palavra proclamada é possibilitada pelo Espírito Santo que falou pelos profetas, que agiu em Jesus e que inspirou os hagiógrafos, Ele é o hermeneuta do Verbo, pois plasmou o Verbo em Maria – iconoplasta. A SC 7 acerca da presença de Cristo na liturgia, assevera que Ele esta presente “na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura”.

Outro aspecto destacado por Triacca refere-se à teologia anamnética ou do memorial, somente pelo Espírito Santo é que a Igreja pode pela ação litúrgica epifanar e realizar a presença de Cristo no Hodie[8].

É por obra do Pneuma que as mirabilia Dei na história humana não ficaram aprisionadas no passado, mas podem ser atualizadas, presentificadas no “Hoje” da ação litúrgica, não sendo uma
“piedosa recordação, mas é de fato ‘anamnese – memorial’ histórico-salvífico”[9]. Há por obra do Espírito uma abertura ao passado que é atualizado no “hoje”, mas com perspectiva do futuro escatológico.
Assim afirma Triacca:

"É o Espírito Santo que vivifica no hodie litúrgico o heri salvífico, antecipando o et in saecula (cf. Hb 13,8). E enquanto a assembleia litúrgica reza ‘Pai’ (cf. Rm 8,15.26-27; Gl 4,6), clama também no Espírito ‘Maran-atha’ (‘Vem, Senhor Jesus!’), suplicando ‘Kyrie, eleison’ (‘Senhor, tende piedade!’) (cf. 1Cor 12, 3), a fim de que a ‘doxa theô’ (a glória prestada a Deus) em Cristo, com Cristo, por Cristo seja verdadeira, íntima, profunda, exaustiva”.


O Espírito Santo aparece como o grande propiciador da anamnese das ações salvíficas de Deus na história humana, que se torna pelo operar do mesmo Espírito, Historia Salutis. Por isto, a Palavra de Deus proclamada na ação litúrgica é “Palavra de Salvação” no “Hoje litúrgico”, não é uma leitura do que aconteceu lá na Palestina, mas o que Deus fez e faz no Hoje da História da
Salvação.[10]

Interessante notar a contribuição de Karl Barth na relação entre a Palavra de Deus e o Espírito Santo, segundo o referido autor, Deus é livre, soberano e transcendente. Deus se dirige ao ser humano por intermédio de sua Palavra, ela é o único fundamento de toda a teologia.

A teoria barthiana da tríplice manifestação da Palavra relaciona-se à forma como Deus se comunica com o ser humano. A Palavra nos atinge de três modos, a saber: 1. o próprio Jesus Cristo, que é a Palavra revelada de Deus; 2. mediante o livro da Escritura, que é o testemunho a respeito de Jesus Cristo; 3. a proclamação da Palavra na Igreja, que comunica, através do Espírito Santo, o que diz a Escritura. De acordo com Barth, por meios naturais o homem é incapaz de ouvir essa Palavra, mas o Espírito Santo imprime a revelação no coração humano.

Nota-se que para Barth, a Palavra de Deus proclamada da Igreja é o lugar da comunicação de Deus com os homens. Poder-se-ia, mesmo afirmar, que é na Igreja, comunidade destinatária da Palavra que esta ganha pela ação do Espírito Santo atualidade e é fonte de Revelação e conhecimento de Deus.

Por fim a Verbum Domini no n. 16 sublinha que é significativo a relação entre o Espírito Santo e a Sagrada Escritura e apresenta duas orações antigas uma antes da proclamação: “Mandai o vosso Espírito Santo Paráclito às nossas almas e fazei-nos compreender as Escrituras por Ele inspiradas; e concedei-me interpretá-las de maneira digna, para os fiéis aqui reunidos delas tirem proveito” e a outra oração no final da homilia, numa epiclese assembleial:

“Deus salvador [...], nós Vos pedimos por este povo: Mandai sobre ele o Espírito Santo; o Senhor Jesus venha visitá-lo, fale à mente de todos e abra os corações à fé e conduza para Vós as nossas almas , Deus das misericórdias”.

Assim poder-se-ia concluir com as palavras de Triacca que propõe uma pastoral litúrgica em que o fiel compreenda que “na liturgia cada gesto é uma ‘proclamação’, cada palavra é um ‘anúncio’, cada celebração é um ‘evento salvífico’, cada pessoa é um ‘ostensório’ visível da presença e da ação invisíveis do Espírito Santo”.

Consciente deste horizonte pneumatológico, o Sínodo dos Bispos, desejou recordar a importância da ação do Espírito Santo na vida da Igreja e no coração dos fiéis relativamente à Sagrada Escritura: sem a ação eficaz do “Espírito da Verdade” (Jo 14,16), não se podem compreender as palavras do Senhor. Assim ser-nos-ia relevante ainda recordar as palavras de Santo Ireneu:
“Aqueles que não participam do Espírito não recebem do peito da sua mãe (a Igreja) o alimento da vida; nada recebem da fonte mais pura que brota do corpo de Cristo”. Tal como a Palavra de Deus vem até nós no corpo de Cristo, no corpo Eucarístico e no corpo das Escrituras por meio do Espírito Santo, assim também só pode ser acolhida e compreendida verdadeiramente graças ao mesmo Espírito Santo.

3. Considerações finais

Para Triacca a lugar privilegiado da Palavra de Deus é a Liturgia, pois para o referido autor, a própria liturgia é epifania do Espírito, assim sendo, o mesmo Espírito que inspirou o hagiógrafo e conduziu o discernimento da Igreja[11] na canonicidade dos textos Escriturísticos, revelará o sentido hermenêutico dos textos na Liturgia.

A própria Dei Verbum assim assevera que o lugar originário da interpretação da Escritura é a vida da Igreja[12], bem em consonância com a DV 12, que corrobora afirmando, por conseguinte, que deve “[...] a Sagrada Escritura ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita”.

Portanto, a Palavra de Deus é fruto do Espírito e só pode dar frutos no Espírito.



4. Referências Bibliográficas

TRIACCA, A.M. "Espírito Santo" (verbete) in: Dicionário de Liturgia org. D. Sartore, A. M. Triacca. São Paulo: Paulinas, 1992.

DEI VERBUM. São Paulo: Paulinas, 2010.
5. Notas de rodapé
[1] Sequência da Solenidade de Pentecostes – Missa do Dia. A Sequência é um prolongamento meditativo do salmo responsorial (que veio substituir os antigos versí­culos aleluiático e o tracto) cantado a seguir à primeira leitura da Missa. Pelo séc. XI surgiram em grande número. A refor­ma tridentina fez uma seleção, que a reforma do Vaticano II reduziu ainda mais o número das Sequências. Atualmente só são obrigató­rias as Sequências da Páscoa e do Pen­tecostes, depois do
Aleluia. (IGMR 64).

[2] Este documento do Papa Bento XVI é denominado pós-sinodal, pois traz para toda a Igreja as conclusões do Sínodo dos Bispos, realizado no Vaticano, nos dias 6 a 26 de outubro de 2008, e que teve como tema "A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja". O conteúdo do documento é apresentado em três partes, articuladas entre si. A primeira, intitulada "A Palavra de Deus" trata do diálogo que Deus estabelece com a humanidade; a segunda, "A Palavra de Deus e a Igreja", apresenta a relação da Igreja com a Palavra de Deus; a terceira, "A Palavra de Deus no Mundo", trata da missão da Igreja como anunciadora da Palavra.

[3] TRIACCA, A.M. "Espírito Santo" (verbete) in: Dicionário de Liturgia org. D. Sartore, A.M. Triacca. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 363.

[4] O termo iconografia vem do grego "Eikon", imagem, e "graphia", descrição, escrita.

[5] VD 16 afirma que São Jerônimo está firmemente convencido de que “não podemos chegar a compreender a Escritura sem a ajuda do Espírito Santo que a Inspirou”. A Dei Verbum afirma: (...) "a Sagrada Escritura é palavra de Deus enquanto escrita por inspiração do Espírito Santo". É fruto do Espírito e, consequentemente deve ser interpretada à luz do mesmo Espírito (cf. DV 12). O apóstolo São João apresenta o Espírito Santo como a inteligência e a memória do cristão: "O valedor, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse" (Jo 14,26). O Espírito nos capacita então para acolher como também para viver a palavra de Deus. Já a Constituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II afirma que Deus se revela em Jesus pelo Espírito Santo: “Aprouve a Deus. na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cfr. Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4)”.

[6] Interessante notar o que Triacca afirma acerca da relação entre Palavra e Pneuma: “A Palavra
proclamada não seria ‘acolhida’ pelos fiéis sem a ação do sagrado Pneuma: ele é acolhimento da Palavra nos fiéis”

[7] SORCI, P. Dalla parola scritta ala parola celebrata.

[8] “[...] no hodie litúrgico, no qual aqui e agora celebrativo, efetua e realiza uma vez potr todas (cf. Hb 7,27) a salvação realizada por Cristo, isto é o ‘mistério pascal’ na sua plenitude”.

[9] TRIACCA, A.M. "Espírito Santo" (verbete) in: Dicionário de Liturgia org. D. Sartore, A.M. Triacca. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 359.

[10] Para Triacca a “liturgia é a celebração-realização do mistério da salvação que se faz história, que é lembrada e revivida em plenitude” (p. 361).

[11] “O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que torna capaz de interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da Igreja e, a partir da imanência dela na vida eclesial, brota também a sua verdadeira hermenêutica”. VD 29.

[12] VD 29.

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