domingo, 6 de março de 2011

Há espaço para Deus no mundo moderno? Teologia da Impotência...


Há espaço para Deus no mundo moderno?

Por: Vanderson de Sousa Silva, Mestrando em Teologia pela PUC-RJ, pedagogo, filósofo e graduando-se em Ciência Social na UFF. (semvanderson@hotmail.com)

Basta olharmos a história recente para verificarmos a tentativa de correntes do pensamento moderno em apagar Deus da história humana:
• filósofos - “Deus está morto” (Nietzsche),
• ideólogos decretaram a extinção da religião e a definiram como “ópio do povo” (K. Marx),
• sociólogos defendiam que na sociedade do futura não se teria espaço para a fé em Deus.
• o sistema comunista stalinista, tentou apagar da Polônia e da ex-União Soviética toda a marca da religiosidade, visto que, acreditavam que na “nova sociedade” o “novo homem”, não necessitaria de Deus.
• Teoria da Evolução de Darwin em suas vertentes mais cientificistas e reducionistas querem reduzir o homem,
• Niilismo, com toda a sua “i-lógica” do nada, esta corrente impregnou desde a educação até a teologia.
• Pessimismo existencialista de Sartre e Schopenhauer,
• Teísmo - um Deus criado à imagem e semelhança do homem para satisfazer as necessidades intelectuais e afetivas.
• Fideísmo – com toda a irracionalidade negando a contribuição da razão no dado da Revelação, uma verdadeira: “sola fidei”
• Racionalismo – com toda a irracionalidade negando a contribuição da fé: “sola ratio”.
No entanto, nenhuma corrente de pensamento questiona mais a existência de Deus, quanto a realidade do mal, do sofrimento, a dor e as injustiças. Estas foram reunidas em um acontecimento – Auschwistz .
O mundo parou perplexo diante das atrocidades feitas nos campos de concentração. O horror da barbárie humana, o grito silencioso das vítimas, tornaram-se ícones: do “desespero humano” de um lado e por outro, da “maldade humana”. A humanidade, após Auschwistz depara-se com a questão: Onde estava Deus? Pode-se ainda crer em um Deus, após Auschwistz ?
A mesma questão, o Papa Bento XVI colocou quando esteve em visita ao campo de concentração de Auschwitz, na Alemanha. O Pontífice não estava resvalando na sua fé pessoal em Deus, mas antes, não temendo colocar no diálogo – fé e razão, a questão acima posta. Busca-se a razoabilidade da mesma, frente a um mundo que “ateu” ou “pseudo-religioso”, olha para Auschwistz como o local da “morte de Deus”.
Neste diálogo, dever-se-ia colocar antes a questão: onde estava a humanidade?
Humanidade no sentido das pessoas da época – políticos-estadistas, intelectuais, artistas, etc..., bem como a “humanidade” dos mentores e executores do projeto “auschwistz” . Humanidade enquanto adjetivo, que mais que qualificar nossa espécie, nos define e distingue.
Ao colocarmos a pergunta – onde estava Deus? - buscamos mascarar a verdadeira questão. Esta deve ser posta de forma imperativa para buscar a responsabilidade do homem - onde estava a humanidade? - não transferindo para Deus, aquilo que nos compete, enquanto pertencentes a “homeridade” .
Interessante notar esta tendência hodierna, afirma-se o “ateísmo” de forma bem sutil, secularizando motivações sagradas, mas ao mesmo tempo em momentos cruciais em que será o homem chamado a responsabilidade, desviamos de nós a questão remetendo-a ao Divino. Somos como crianças imaturas,que diante de algo que fizemos de errado, logo acusamos um outro, para se fugir da responsabilidade.
Auschwistz, constitui-se no marco de divisão entre o ético e a “monstruosidade”. O homem pode lançar-se de um extremo ao outro, é capaz de alcançar o mais alto grau de humanização e educação, e descer ao mais ínfimo processo de desconstrução do que de mais pleno se tem, em ser HOMEM.
Porém, a legitimidade da pergunta: onde estava Deus? - é valida no sentido de nos confrontar com a questão de fundo de todo ser humano – a existência da transcendência. O problema posto, é de como pode um “Deus-amor” permanecer indiferente a dor humana.
Duas questão estão no fundo: a primeira, da transferência de nosso ser para o Ser de Deus, temos uma necessidade de “antropomorfizar” a Divindade, para identificarmo-nos; um segundo, a não responsabilidade pelos atos, o ter que achar “o culpado”, para esquivar-nos do imperativo ético de co-responsabilidade e “cuidado” pelo “outro”.
Aprofundando a primeira questão: o antropomorfismo é uma presença na religiosidade antiga, não é privilégio hodierno. A Sagrada escritura, já utiliza-se deste recurso:
• No mito da Criação, Deus possui mãos para modelar o homem, passeia no jardim do Éden...
• Os profetas recorrem a este recurso, Deus possuindo entranhas, Deus como oleiro á modelar a argila, ciúmes de Israel em relação a idolatria, etc...
• Deus tendo sentimentos: ira, compaixão, ciúmes, arrependendo-se de ter criado o homem, vingar-se dos inimigos, etc...
Estes antropomorfismos, existem, pois, o homem só pode expressar-se a partir do contexto
em que vive – cultura, língua, ciência etc... - assim, Deus ao revelar-se ao hagiógrafo sabe-se condicionado as contingências do escritor e este, transporta para Deus realidades proeminentemente humanas, visto que, somente conhece o “mundo dos homens”.
Poder-se-ia, constatar por conseguinte que invariavelmente as “propostas” religiosas tem como substrato o constante recurso do antropomorfismo, visto que, a experiência humana de Deus é sempre mediatizada pelo próprio limite do humano. Não poderia o mesmo, dizer algo da Transcendência sem que antes, esta lhe revelasse algo de seu ser. Mesmo este dado revelado sera como que impregnado de condicionamentos humanos.
Digo tudo isto, pois para o homem que “olha” Auschwistz e antropomorfiza a Divindade, esperando da mesma, atitudes de onipotência, constata um paradoxo – Auschwistz é o testemunho da impotência de um Deus!
Analisemos um pouco todo o discurso teológico acerca da onipotência do Deus cristão. A própria liturgia cristã, assevera um discurso afirmativo sobre um Deus “Todo-poderoso”, basta algumas orações:

“Omnípotens Deus et, dimíssis peccátis nostris, perdúcat nos ad vitm aeternam” (Oração de conclusão do ato penitencial)

“Que o Deus todo-poderoso vos abençoe no dia de hoje, quando o seu Filho penetrou no mais alto dos céus, abrindo o caminho para a vossa ascensão” (Fórmula de benção – Ascensão do Senhor)

“Deus todo-poderoso, pelas preces de São José, a quem santificastes as primícias da Igreja, concedei que ela possa levar à plenitude os mistérios da salvação. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do espírito Santo.” (Oração da Solenidade de S. José – 19 de Março)

A própria catequese em seu discurso sobre a definição, “de quem é Deus?”, responde – um ser perfeitíssimo, onipotente, onipresente e onisciente. Todo um discurso popular do “senso comum cristão”, caminha nesta mesma afirmação, do total poder de Deus em relação a tudo o existente: “para Deus nada é impossível...”, “Deus pode, poder tudo...”, “se Deus quiser, eu farei...”.
A fundamentação de todo este discurso da “onipotência” de Deus, tem seu lugar em alguns textos da Sagrada Escritura, não raras vezes, estas perícopes são descontextualizadas de uma exegese correta, vejamos alguns exemplares:
• “Para Deus, com efeito, nada é impossível” (Evangelho segundo Lucas 1, 37)
• “Tu te compadeces de todos, porque tudo podes” (Livro da Sabedoria – Sb 11, 23)
• “Ele faz todo o que quer” (Salmo 115, 3)
• “...o Poderoso de Jacó” (Livro do Gêneses - Gn 49, 24)
• “Teu grande poder está sempre a teu serviço, e quem pode resistir à sua força?” (Livro da Sabedoria - Sb 11, 21)
• “Graças vos damos, Senhor Deus onipotente...” (Ap 11, 17)
De todos os atributos divinos, somente o de “onipotente” é figurado como parte do ato de fé da Igreja, exemplo disto, decorre-se do fato de ter sido inserido no “Símbolo da Fé”, ou credo, a seguinte proposição: “Creio em Deus pai todo-poderoso...” . Tamanha é a importância que se concede a afirmação do poderio de Deus, como parte da compreensão da Sagrada Escritura e da própria fé da Igreja no mistério de um Deus criador.
Mas, como pode-se conjugar a fé num Deus que “pode fazer tudo” e que não se move em direção à dor de tantos homens, mulheres, idosos e crianças nos campos de concentração e ainda hoje, em tantas catástrofes e injustiças em meio a dor humana?
O que o Papa Bento XVI, fez diante do “ícone” da dor humana – Auschwistz, foi exatamente declarar ao mundo, que tanto questiona a presença, ou melhor, a não-presença do Deus cristão frente a dor humana, de que o Deus cristão é impotente.
Por mais paradoxal que seja esta constatação, ela revela a melhor face da teologia cristã, ou ainda, a mais bela definição do Deus revelado em Jesus Cristo, nosso Deus manifesta-se na fraqueza. Pensemos na afirmação do apóstolo dos gentios, Paulo, “...pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder” (2 Cor 12, 9). Somente a fé pode discernir quando a onipotência divina “se manifesta na fraqueza...” da impotência. Assim descreve Bruno Forte:

É também sob esta luz que se lê a onipotência divina: tudo pode no amor, é certo, aquele que é a absoluta plenitude da vida! No amor ele pode tudo ordenar ao bem: é o mistério da sua providência! Justamente porque o seu poder infinito o é no amor, e o amor é infinitamente na liberdade, Deus nunca exerce o poder de sua providência contra a liberdade da criatura: prefere parecer impotente ou surdo ante os gemidos dos moribundos!

Em muitas orações litúrgicas e textos da Sagrada Escritura, encontramos aquilo que o Papa Bento XVI nos apresenta. As orações litúrgicas propostas pela Igreja aos fiéis, além de cumprir uma finalidade de confiança e adoração à Deus, estas fazem, com que a prece do orante, seja sempre dirigida ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. “Tudo vem do Pai pelo Filho no Espírito; e tudo, no mesmo Espírito, pelo Filho ao Pai”.
Há um sentido para isto, reza-se a um Deus que é Pai e misericordioso, e também “todo-poderoso”, sua paternidade e poder iluminam-se mutuamente. Percebe-se bem esta frase com a seguinte perícope: “Serei para vós um pai, e sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor todo-poderoso.” (2 Cor 6, 18), onde Paulo, faz uma citação do Livro de Samuel – 2 Sm 7,14. Paternidade, onipotência e impotência em Deus são como que faces de um mesmo prisma, onde “poder” é fraqueza e paternidade é impotência.
Auschwistz, põe a fé em Deus à prova pela experiência do mal e do sofrimento, estes como realidades que em muito ultrapassam a compreensão do homem, permitem ao mesmo, questionar: como pode um Ser que é a Bondade, a Beleza, o Uno e a Verdade, co-existir com a maldade e não reagir com “poder” para destruir o mal, a feiura e a mentira?
A teologia cristã apresenta um paradoxo – Deus revela sua onipotência da maneira mais misteriosa na “kenose” voluntária, na Encarnação e morte na cruz, onde Jesus “embora sendo de divina condição... não se apegou ciosamente a ser igual em natureza a Deus pai. Porém esvaziou-se de sua glória e assumiu a condição de um escravo, fazendo-se aos homens semelhante”. Cristo é a revelação do “Deus absconditus”, sendo Ele próprio o ícone da “impotência” de um Deus onipotente; a onipotência está no amor aos homens e a impotência no mesmo amor. Enganar-se-ia, quem tomasse a palavra “amor” em sua restrição lexical, numa hermenêutica do amor humano, visto que, em Deus “amor” é sua essência e seu ser - “Deus é amor” (1 Jo 4, 8), esta é a palavra mais assustadora de toda a Sagrada Escritura.
Na Encarnação, Deus se fez homem, “o Verbo se fez carne e armou sua tenda no meio de nós e vimos a sua glória” (Jo 1, 14), o texto joanino em duas palavras: “fez carne” e “sua glória” coloca a contradição do Deus revelado em Jesus Cristo diante de nós. Como pode um Deus se esvaziar, não se apegar a sua condição divina e num “empobrecimento”, assumir nossa “carne” com todas as implicações – dor, morte, limites, fragilidades etc... - e ainda mostrar a sua glória?
Este é o Deus revelado na pequenez do menino Jesus, o Deus cristão se faz “bebê”. Aceita voluntariamente ser preso, açoitado, recebe cusparadas e bofetões, é crucificado e morre na cruz. Neste ato de amor revela-se “impotente”, fraco e pequeno, no entanto, vence o mal com toda a sua onipotência. Em Deus a fraqueza é onipotente e a onipotência é impotência.
Assim, Cristo crucificado é “poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1, 25).
Somente a fé possibilita acesso aos caminhos misteriosos da onipotência-impotente de Deus. Esta fé gloria-se de suas fraquezas, “pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder...” (2Cr 12, 9). Assim, Deus frente a Auschwistz e toda a dor e sofrimento humano é onipotente na impotência, sem deixar de manifestar sua força, no Amor. Deus ama em meio ao ódio, salva em meio a condenação e já deu a última palavra em relação ao mal e o pecado – Jesus Cristo Ressuscitado.
A outra questão a ser melhor abordada é a transferência de responsabilidades. Esta reação é encontrada também no mito da Criação no livro do Gênesis, onde após comer a fruta proibida e questionado por Deus, adão joga a culpa na mulher, esta por sua vez, na serpente. A moderna psicologia clareia esta necessidade de não responsabilizar-se pelo atos, transferindo a outros/coisas a culpa, seja para livrar-se da mesma por medo das consequências, ou ainda por querer a vingança, temos que achar o “bode expiatório” .
Auschwistz, deve estar diante de nossos olhos, não para buscarmos “culpados”, mas antes, para não permitirmos que ainda hoje, faça o homem, qualquer ação, onde a ética/moral e a inviolabilidade da vida humana não sejam imperativos. A religião, muito tem a contribuir como marco delimitador e sensor, até mesmo, coercitivo da consciência do homem, lembrando-o dos valores transcendentais de virtude: temperança, justiça, bondade, equidade etc..., bem como as consequências de nossos atos, como nos faz a escatologia.
No entanto, verifica-se um aumento da “espiritualização” e transcendência no homem contemporâneo, ainda que vivamos em uma sociedade pagã e des-sacralizada, em que se negam as origens cristã do pensamento e estruturas intelectuais, culturais e estatais do Ocidente, há fé e experiência de transcendência , ainda que paradoxal na contra-mão do paganismo moderno.
Muito pertinente é a palavra do teólogo italiano, Bruno Forte:

Quem discorre sobre Deus tem o encargo de transpor esse limiar em ambas as direções, para perscrutar no 'Deus revelatus' o 'Deus absconditus' e contar, assim, na história dos homens a história de Deus [...]

Esta constitui-se na mais bela missão de “quem discorre sobe Deus...”, fazer o Deus escondido no mistério de sua transcendência, revelar-se na história humana, transformando-a em história de Salvação.

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