domingo, 6 de março de 2011

O FENÔMENO DAS ORAÇÕES EUCARÍSTICAS LIVRES


O FENÔMENO DAS ORAÇÕES EUCARÍSTICAS LIVRES

Por Vanderson de Sousa Silva¹ (contato: semvanderson@hotmail.com)

No que tange ao assunto que se buscará estudar neste item, limitaremos à análise fenomenológica da ‘recitação’ de Orações Eucarísticas de forma livre, improvisada, adaptada e dispensando o texto de uma das Preces Eucarísticas contidas no Missal Romano.
A Constituição Sacrosanctum Concilium, no n. 37, assevera que a Igreja não deseja “impor na Liturgia uma forma rígida e única para aquelas coisas que não dizem respeito à fé ou ao bem de toda a comunidade. Antes, cultiva e desenvolve os valores e os dotes de espírito das várias nações e povos.” No que tange ao desejo de não impor uma forma rígida não vale para as Orações Eucarísticas, pois estas diretamente dizem respeito à fé, os textos eucológicos-anafóricos trazem em suas afirmações considerações acerca da depositum fidei.
A realidade mostra-nos uma tendência em alterar o que se refere a textos litúrgicos como os vários Ordos dos sacramentos e do próprio Missale Romanum, este fenômeno da improvisação e alteração nos textos litúrgicos depara-se com fundamentalmente dois perigos: o primeiro é a heterodoxia e o segundo, o personalismo na liturgia.
Em relação ao primeiro perigo, pode-se afirmar que o celebrante da Eucaristia ao alterar e principalmente ao rezar livremente a Oração Eucarística está exposto a afirmar na oração heresias trinitárias, cristológicas, eclesiológicas e pneumatológicas. Estas afirmações podem negligenciar o Credo, este é normativo da fé, não podendo ser dispensado como modelo de medida das verdades fundamentais da Fé cristã. A comunidade cristã tem o direito de receber por parte de seus pastores uma sólida formação nas verdades da fé. Boyer, corrobora esta constatação do perigo da heterodoxia na total liberdade de rezar livremente a Prece Eucarística, para o autor o que fez com que a Igreja antiga formulasse por escrito uma Anáfora Eucarística foi principalmente as formulações heréticas, particularmente a grande crise ariana, na segunda metade de século IV .
O segundo perigo da alteração dos textos dos Rituais dos sacramentos e da Celebração da Eucaristia é o do personalismo por parte do presidente da celebração ou da equipe de liturgia, este personalismo é a alteração que gera um novo rito , mas um rito pessoal – meu rito. Esconde esta prática um equívoco, afirma-se que o Ritual é fixista e que não se pode prender à letra; contudo, ao alterar o Ritual, cria-se um novo ritual, só que este é individual, não é eclesial, no sentido mais belo do léxico, pois os Ordines foram construídos ao longo da história da Igreja e pela sua autoridade, não é trabalho individualista.
Em 2004, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, escreveu a pedido do Papa João Paulo II uma instrução – Redemptionis Sacramentum, sobre alguns aspectos que se deve observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia, nesta instrução encontra-se alguns pontos que diretamente tange a temática da recitação das Orações Eucarísticas de forma ‘livre’, no n. 51 assevera restritivamente que “Sejam utilizadas somente as orações eucarísticas que se encontram no Missal Romano ou legitimamente aprovadas pela Sé apostólica [...]” . A Instrução sita a Carta Apostólica Vicesimus quintus annus de João Paulo II, nesta carta o Papa escreve que “Não se pode tolerar que alguns sacerdotes se arroguem o direito de compor orações eucarísticas” ou modificar o texto daquelas aprovadas pela Igreja.
Bogaz e Signorini apresentam critérios para a adaptação litúrgica em quatro pontos, a saber: fé, litúrgico, eclesiológico e antropológico. Segundo os autores a adaptação se fundamenta na Encarnação do Verbo “[...] que atua na história e se presentefica na realidade de todos os povos humanos [...]” , há uma fundamentação teológia da adaptação que é o Mistério Encarnatório de Cristo que assumiu nossa carne. Contudo os autores afirmam que a liturgia possui elementos que são imutáveis, de direito divino, assim afirmam que “[...] a liturgia deve conservar os elementos imutáveis (instituídos pelo próprio Cristo)” para “[...] preservar a unidade das comunidades eclesiais numa só Igreja [...]” e servir-se de um instrumento simbólico compreensível por todos os fiéis.
Para Bogaz e Signorini, o próprio Ritual apresenta possibilidades de escolhas e fórmulas para adaptarem-se às diversas circunstâncias; assim afirmam que “celebrar com criatividade é mais que introduzir novas expressões; é, sobretudo celebrar bem e explorar bem as possibilidades de escolha apresentadas pelos próprios Rituais [...]” .
As prenotandas dos Rituais apresentam-nos a possibilidade de adaptação na liturgia, o n. 23 da Instrução Geral sobre o Missal Romano – IGMR, afirma que para que “[...] aumente sua eficácia pastoral, apresentam-se nesta Instrução Geral e no Ordinário da Missa alguns ajustes a adaptações.”, estas adaptações consistem na escolha de alguns ritos ou textos, ou seja, de cantos, leituras, orações, monições e gestos “mais correspondentes às necessidades, preparação e índole dos participantes [...]”. Portanto, na própria Igreja possibilita esta adaptação e a escolha na execução dos Ritos litúrgicos, esta escolha é do presidente da celebração. Contudo, o n. 24 da IGMR, afirma que o sacerdote “deve estar lembrado de que ele é servidor da sagrada liturgia” e de que não lhe é permitido, por iniciativa própria “[...] acrescentar, tirar ou mesmo mudar qualquer coisa na celebração da Missa”, esta assertiva por parte das prenotandas fundamenta-se no n. 22 da Sacrosanctum Concilium que proíbe a mudança e alteração no Rito.
A IGMR do n. 352 ao 399 trata da possibilidade de variações e escolhas de fórmulas e orações no Ritual. O título do capítulo VII da IGMR é bem sugestivo: ‘A escolha da Missa e de suas partes’, o cap. VIII – ‘Missas e orações para as diversas circunstâncias e Missas dos fiéis defuntos’ e, por fim, o cap. IX tem como título – ‘Adaptação que compete aos Bispos e às suas Conferências’. Demonstrando que há uma variedade de possibilidades enorme nas escolhas das Missas e Orações do Ritual .
Especificamente no que tange às Orações Eucarísticas, a IGMR, afirma no n. 364 que se pode escolher “[...] o grande número de prefácios com que o Missal Romano foi enriquecido [...]” com a intenção de realçar os vários aspectos do mistério da salvação. Contudo o n. 365 normatiza a escolha das Orações Eucarísticas, estabelecendo que a Oração Eucarística I pode ser escolhida sempre, porém é “mais oportuno nos dias em que a Oração Eucarística tem o ‘Em comunhão’, ou seja, na solenidade da Páscoa, Ascensão, Pentecostes, Natal e outras, bem como nas celebrações dos Apóstolos e dos santos mencionados na Oração I (exemplo: Lino, Cleto, Clemente, Águeda, Luzia, Perpétua e Felicidade e outros). A Oração II por suas características particulares é mais “apropriadamente usada nos dias de semana ou circunstâncias especiais [...]” e nas Missas por um fiel defunto por causa do seu Memento que possibilita a nomeação do defunto. A Oração III, diz a IMGR que dê-se preferência a ela nos Domingos e festas, enquanto que a Oração IV, possuindo um Prefácio próprio e imutável, pode ser escolhida quando a Missa não possui prefácio próprio bem como nos Domingos do Tempo Comum.
Observa-se, portanto que a adaptação é possível e até desejada pela Igreja; contudo, como bem afirma a - IV Instrução para uma correta aplicação da constituição Conciliar sobre a liturgia – da Congregação pra o Culto Divino, que esta deve ser realizada “[...] no respeito da unidade substancial do Rito Romano [...]”
Contudo, observa o Papa João Paulo II na Alocução ao Regional Nordeste 3 da CNBB em 29 de setembro de 1995, na visita Ad limina apostolorum, que a liturgia deve manifestar e unir uma Igreja particular sem perder a unidade do Rito Romano e o Espírito litúrgico, particularmente o Papa refere-se a Igreja no Brasil. Para Beckhäuser, comentando esta mesma Alocução afirma que no Brasil não há lugar para um rito afro-brasileiro, visto que os afro-brasileiros foram evangelizados a partir do Rito Romano e que no dizer de João Paulo II, tem-se que “[...] enraizar a Liturgia Romana nas diversidades culturais do Brasil” . Muito oporturtuno é a compreensão da liturgia como epifania de um Outro que é Deus em seu Mistério, como bem se expressa Ratzinger:


"A liturgia não é um show, um espetáculo que necessite de diretores e de atores de talento. A liturgia não vive de surpresas ‘simpáticas’, de invenções ‘cativantes’, mas de repetições solenes. Não deve exprimir a atualidade e o seu efêmero, mas o Mistério Sagrado. Muito pensaram e disseram que a liturgia deve ser ‘feita’ por toda a comunidade para ser realmente sua. É um modo de ver que levou a avaliar o seu sucesso em termos de eficácia espetacular, de entretenimento. Desse modo, porém, terminou por dispersar o proprium litúrgico, que não deriva aquilo que nós fazemos, mas do fato de que acontece. Algo que nós podemos, de modo algum, fazer. Na liturgia age uma força, um poder que nem mesmo a Igreja inteira pode atribuir-se: o que nela se manifesta (que não é, portanto, dona, mas serva, mero instrumento), chega até nós."




Para Ratzinger, a liturgia tem um proprium que não deriva de sua ação, mas é a acolhida do Totalmente Outro. Assim, o presidente da celebração litúrgica tornando-se servo do Mistério que se manifesta nas ações litúrgicas – o proprium Dei.

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1. O autor é mestrando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-RJ, graduado em Filosofia, Teologia.É pedagogo e graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense - UFF.

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